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Crítica

Qorpo-Santo como um homem de seu tempo

13.6.2014  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Martino Piccinini

A peça Santo Qorpo ou O louco da província, que estreou na semana passada e está em cartaz até domingo (15/6) no Teatro Bruno Kiefer, em Porto Alegre, chega com a hipótese de que a obra do dramaturgo e poeta Qorpo-Santo (1829–1883) deve ser entendida como autobiográfica. É uma tese ousada porque vai na contramão das teorias literárias que pedem cuidado ao tentar explicar a obra pela biografia do autor. Mas há um bom argumento: Qorpo-Santo deixou, sim, textos autobiográficos, e suas peças veiculam uma certa visão de mundo que lhe era muito própria.

Por essas e outras, a maneira mais proveitosa de assistir ao trabalho dirigido por Inês Marocco é suspendendo a distinção entre realidade e ficção. Escrita por quatro integrantes do elenco (Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana), a dramaturgia tem como base o livro Cães da província, de Luiz Antonio de Assis Brasil, que romanceia a vida do autor. O roteiro é acrescido de excertos da Ensiqlopédia, a obra em nove volumes de Qorpo-Santo, onde estão as peças e outros textos.

A ação transcorre em ritmo acelerado, especialmente no início, aproximando-se do ritmo das peças de Qorpo-Santo. Sem dúvida, o momento mais divertido é a cena em que ele tenta convencer sua mulher de que Napoleão III está na sala de casa. No competente trabalho do roteiro, é de se lamentar apenas que a trama termine no meio da história, quando ele embarca para ser avaliado por um alienista no Rio de Janeiro.

Qorpo-Santo é caso raro de escritor brasileiro que não costuma ser estudado à luz dos movimentos artísticos nacionais. Em vez disso, é associado a tendências europeias anacrônicas a ele, como o teatro do absurdo e o surrealismo. Ambientado no século 19, o espetáculo parece entender o autor como um homem de seu tempo, embora polêmico – às vezes visionário, como na denúncia do uso de escravos pela sociedade; às vezes idealista, como na reforma gramatical que não vingou.

O elenco jovem do Santo Qoletivo denuncia certa inexperiência, mas a diretora soube extrair o melhor, pois a maioria dos atores faz justiça a seus papéis. Os quatro que representam Qorpo-Santo (são eles Áquila Mattos, Eduardo Schmidt, Jeferson Cabral e Rodolfo Ruscheinsky) ressaltam as multidões internas do personagem sem comprometer a unidade.

A cenografia econômica de Martino Piccinini, composta por algumas cadeiras e um balcão, dá sequência à estética da encenação praticada em espetáculos anteriores da diretora, aqui também pontuada por uma discreta trilha sonora, executada ao vivo pelos próprios atores (orientados por Adolfo Almeida Jr.). Os figurinos de Rô Cortinhas se destacam como elemento de época, um show à parte. E a iluminação de Fernando Ochôa salienta um efeito de chiaroscuro que lembra as pinturas de Caravaggio e Rembrandt. É a metáfora definitiva da vida de Qorpo-Santo: uma sequência de claros, como sua atividade tipográfica, e escuros dos quais nada se sabe, como anotou ainda em 1975 o pesquisador Flávio Aguiar.

.:. Publicado originalmente no jornal Zero Hora, Segundo Caderno, p. 3, em 13/6/2014.

Serviço:
Onde: Teatro Bruno Kiefer na Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736, 6º andar, Porto Alegre, tel. 51 3221-7147).
Quando: Quinta-feira a domingo, às 20h. Até 15/6.
Quando: R$ 20

Ficha técnica:
Direção: Inês Marocco
Dramaturgia: Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana
Com: Áquila Mattos, Eduardo Schmidt, Gabriela Boccardi, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar, Ketti Maria, Magda Schiavon, Naomi Luana,Renata Cieslak e Rodolfo Ruscheinsky.
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Fernando Ochoa
Cenografia e arte gráfica: Martino Piccinini
Orientação musical: Adolfo Almeida Jr.
Assistência de direção: Gabriela Boccardi e Magda Schiavon
Criação e execução da trilha sonora: Eduardo Schmidt e o grupo.
Produção: Gabriela Boccardi, Jeferson Cabral, Ketti Maria e Renata Cieslak
Assessoria de imprensa: Juçara Gaspar

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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