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Crítica

Retrato expressionista de vidas vazias

25.6.2014  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Vilmar Carvalho

Pequenas violências – silenciosas e cotidianas é uma das peças mais instigantes produzidas em Porto Alegre nos últimos tempos. Embora tenha estreado no final de 2013, seu grande ano deve ser 2014: no fim de semana passado, o espetáculo teve duas sessões no Theatro São Pedro, onde assisti, e, em setembro, retorna ao Teatro de Arena (espaço para o qual foi concebido) durante o 21º Porto Alegre Em Cena.

Em seu primeiro trabalho individual como dramaturgo, Fernando Kike Barbosa – mais conhecido como ator e diretor – cria um texto sem rubricas, ao qual tive acesso, com diversas vozes que podem ser lidas como um monólogo. Nesta primeira montagem, encenada por ele mesmo, optou por compor a cena com cinco atores da Cia. Stravaganza: Cassiano Ranzolin, Janaina Pelizzon, Liane Venturella, Rafael Guerra e Rodrigo Melo.

Tão ou mais surpreendente do que a dramaturgia é o trabalho de direção, extremamente sutil e cuidadoso. Há uma clara preocupação em provocar sensações no público, sem jamais encostar nele ou propor qualquer tipo de interação direta. O resultado é alcançado pela movimentação (aproximações e distanciamentos da plateia) e pela trilha sonora (de Paulo Arenhart).

A iluminação é um caso à parte: conta exclusivamente com lanternas de luzes coloridas que os próprios atores manipulam, iluminando-se a si mesmos de baixo para cima com o objetivo de criar uma estética meio expressionista, com as sombras do nariz e das sobrancelhas carregadas. Em quase uma hora de espetáculo, o público vê apenas rostos e outros detalhes, um tipo de fotografia a que estamos mais acostumados no cinema.

É o cenário perfeito para estes personagens sem biografia que vagam por uma cidade embotada pelo vazio da vida contemporânea na metrópole: um sujeito que não encontra motivação na relação amorosa e planeja um atentado, um desempregado estressado pela burocracia que busca alívio na bebida, uma senhora solitária que deposita afeto no cachorro, e por aí vai.

Estas vozes se encontram, ao final, em um acidente no qual um ônibus atropela um transeunte (tema mais atual do que nunca), mas o que importa não é o desfecho, e sim o durante. Uma polifonia de monólogos que veiculam preconceitos arraigados na sociedade: machismo, racismo, homofobia, etc. Aqui, o angry young man de John Osborne encontra o fluxo de consciência de James Joyce. Não há herói, nem anti-herói. É um retrato exagerado do nosso tempo, mas carregar a pincelada é um recurso clássico para melhor expor a realidade. Há pontas soltas na trama, o que não compromete a fruição.

Precisos em suas marcações, os atores têm desempenhos exemplares, coroando uma ótima fase da Cia. Stravaganza, que já havia estreado em 2012 um grande espetáculo (Estremeço, de Joël Pommerat, com direção de Camila Bauer). Pequenas violências é uma forte candidata a melhor peça gaúcha do ano.

.:. Publicado originalmente na versão on-line do jornal Zero Hora, em 19/6/2014.

Ficha técnica:
Texto e direção: Fernando Kike Barbosa
Com: Cassiano Ranzolin, Janaína Pelizzon, Liane Venturella, Rafael Guerra e Rodrigo Mello
Trilha sonora: Paulo Arenhart
Figurinos: Coca Serpa
Iluminação: Cia. Teatro di Stravaganza
Produção executiva: Adriane Mottola e Fernando Kike Barbosa
Produção: Cia. Teatro di Stravaganza (Porto Alegre/RS)

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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