Crítica
Em La imaginación del futuro, o diretor Marcos Layera e a Compañía de Teatro La Resentida revolvem uma passagem trágica do Chile: o golpe militar e consequente morte do presidente Salvador Allende, que teria cometido suicídio em 11 de setembro de 1973 sob bombardeio do Palácio La Moneda, no centro de Santiago (outra versão diz que ele foi assassinado por soldados). Não falta adrenalina ao espetáculo que abriu o 3º Mirada – Festival Ibero-Americana de Artes Cênicas de Santos, seja pela expressão física das atuações ou pela ousadia dessa jovem geração que está em cena, criou a dramaturgia em colaboração e maneja esse material explosivo incorrendo em riscos no exercício de dialogar com o mito e dessacralizar o estadista que influenciou o destino da nação.
E se Allende tivesse renunciado ao governo em vez de resistir convictamente em nome da revolução socialista sem pegar em armas? Havia alternativa a essa estratégia utópica, à maneira de Gandhi, que nem Cuba, apoiadora, e tampouco Estados Unidos, detratores, jamais adotariam num conflito? São algumas das questões essenciais arguidas pela narrativa que não se pretende revisionista e expõe no tabuleiro ficcional as pulsações daquele momento fatídico deflagrador da ditadura.
A manipulação é o fiel da balança entre os bastidores do poder e aquele de um estúdio de gravação. O palco vira um set permanente com os holofotes, cenário, telões e figurinos para maquiar a realidade que ali pise. No centro dessa tensão de envelopar as aparências das memórias revisitadas está o proto-personagem de Allende, sujeitado a toda forma de comando, um títere de carne e osso, paletó e gravata, tratado sem condescendência institucional pelo seu séquito, uma maioria traidora de homens e mulheres que sugaram a energia dos seus últimos dias, entre a tentativa de golpe de junho de 1973 e o ardil levado a cabo cerca de três meses depois, escancarando o ciclo de 17 anos de ditadura e assassinatos de mais de três mil pessoas.
Estamos às vésperas da lembrança dos 41 anos daqueles fatos. E faz apenas 24 anos que o ditador Augusto Pinochet deixou o governo. Ou seja, o equivalente à faixa dos 20 e poucos anos de idade do elenco da Resentida encorajado a se debruçar sobre o mito de Allende com distanciamento e sede de contradições, elas que estão permanentemente refletidas no presente da sociedade chilena.
O terceiro espetáculo da companhia fundada em 2008 equaciona o vastíssimo painel de ideias e de pensamentos crítico e autocrítico com soluções ágeis, o humor inconcessível, a clareza dialética nas abordagens, instigando o espectador a encontrar seu caminho de leitura. Ao público brasileiro pouco familiarizado com a historiografia daquele país talvez escapem nuances sociopolíticos, o que não impede a associação universal com o vale-tudo jogado nos processos sucessórios, independente das filiações partidárias.
A maquinação global do palco pelos atores-contrarregras é operada sobre o território audiovisual, sua captura hegemônica do imaginário em qualquer sociedade ungida pelo espetacular. As armações por trás dos discursos de Allende, um orador excepcional (o olhar e a fisionomia de Rodolfo Pulgar impressionam pelo mimetismo), são enunciadas e filmadas com a gravidade daquelas horas cruciais assim que o diretor da filmagem grita “ação”. A cada tomada interrompida, precipita a superficialidade, o agito e o histerismo dos auxiliares, dos ministros de estado mascarados, seduzidos e siderados pelas oportunidades do cargo – o coletivo investe com particular ironia sobre o responsável pela pasta da Cultura, a que lhe corresponde diretamente pelo trabalho com a arte.
Duas obras cinematográficas emergem das entrelinhas de La imaginación del futuro pela delineação e edição do olhar da câmara. O antológico documentário A batalha do Chile (1975-1979), de Patricio Gúzman, testemunho ocular da turbulência histórica que culminou no golpe militar fulminante sobre o presidente Salvador Allende. E a comédia No (2012), de Pablo Larraín, adaptação da peça El plebiscito, de Antonio Skármeta, contemplada com o Oscar de filme estrangeiro no ano passado ao dissecar a propaganda relativa à consulta pública que decidiu se o general Augusto Pinochet seria perpetuado ou não no poder.
Neste sentido, o espetáculo pode ser assimilado como contrapropaganda nos planos da ideologia, da política e da economia nas polaridades entre a utopia da democracia socialista sonhada por Allende e a democracia liberal sacramentada pelo general de turno. Em ambos os casos, a população segue convivendo com as marcas profundas da memória e as logomarcas ostensivas da sobrepujança capitalista replicada nos frenesis gestual e vocal.
Há uma ressalva. Layera e companhia se contradizem e deslizam na relação brechtiana com o público ao interagir com um espectador na hora de recolher “doações” para dissimular a alienação religiosa como uma das instâncias do ato de manipular. A projeção da imagem da pessoa abordada por recusar-se a colaborar (uma atriz dedo-dura tenta “desmoralizá-lo”) ultrapassa limites éticos. Os criadores pretendem apontar a demagogia alheia e, aqui, procedem com a mesma moeda. A violência do estado ou do sistema já se faz evidente por outros recursos da obra.
Considerando as criações que La Resentida e Teatro en el Blanco (La reunión) trazem para o Mirada, a produção chilena atual segue falando de urgências de seu tempo com teatralidades bem sustentadas. Em direções opostas – o transbordamento ante o despojamento –, ambos os coletivos conciliam inquietudes artísticas e cidadãs sem meias verdades. Pelo menos aquelas que acreditam, provocam e transparecem em cena dando o que pensar.
.:. O jornalista viajou a convite do Sesc SP, organizador do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos.
.:. La imaginación del futuro terá apresentações em São Paulo, no Sesc Consolação, dias 24 e 25/9. Mais informações, aqui.
.:. O site da Compañía de Teatro La Resentida, aqui.
.:. A programação completa e as atividades formativas do Mirada até 13/9, aqui.
Ficha técnica:
Direção: Marco Layera
Dramaturgia: La Resentida
Elenco: Benjamín Cortés, Benjamín Westfall, Carolina Palacios, Carolina de La Maza, Diego Acuña, Ignacio Fuica, Pedro Muñoz, Rodolfo Pulgar e Sebastián Squella
Design de palco: Pablo de la Fuente
Música: Marcello Martínez
Técnico de vídeo: Karl Heinz Sateler
Assistente de som: Diego Jeldes
Assistente de cena: Valeria Aguilar
Produtor: Nicolás Herrera
Coprodução: Fundación Teatro a Mil e Terni Festival (Itália)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.