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Crítica

A mais bela flor do capitalismo

3.12.2014  |  por Rafael Duarte

Foto de capa: Denilson Alves

O teatro de rua se alimenta da cultura popular para expor as vísceras e contradições de um Brasil, geralmente a partir do Nordeste. Na visão dessa dramaturgia, o nordestino é essencialmente um pobre coitado e ingênuo que sobrevive do que o destino lhe reserva, levando em conta a querência de um Deus que castiga. A bravura e a resistência surgem invariavelmente como contrapontos sustentados, na literatura, pelo pensamento euclidiano que funciona quase que como uma sentença: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Na esteira dessa peleja do homem contra seu destino, o humor apimenta o maniqueísmo de um bem e um mal retratados de forma alegórica. E o espetáculo apresenta seu juízo final a partir da consciência de seus protagonistas.

Em Flor de macambira, o grupo paraibano Ser Tão Teatro traz a público a estética desse nordestino ao mesmo tempo vítima e algoz de sua história. A peça é uma adaptação livre de O coronel de macambira, do pernambucano Joaquim Cardozo. Nela, a lenda do boi de reis é pano de fundo para a saga de Catirina (Isadora Feitosa). A história une a jovem Catirina, filha do coronel da Fazenda Macambira, e o pobre lascado Mateus (Rafael Guedes). Contra a vontade do pai dela, os dois se apaixonam, fogem de casa e ganham o mundo.

A partir daí o casal entra em confronto com a própria consciência. A alma da ingênua Catirina é simbolizada pelo boizinho mágico, espécie de amuleto com poderes sobrenaturais. Sem dinheiro, mas suscetível aos vícios e encantos mundanos, Catirina é colocada à prova em uma série de situações que a leva a escolher entre o bem simbolizado pelo amor de Mateus e o mal que muda de cara na medida em que a história vai se desenrolando. E aí surgem o coronel matador, o padre capitalista, o bicheiro contraventor, o economista esperto, o banqueiro, o marqueteiro e outras personificações do Coisa-ruim. O espetáculo mostra o capitalismo como a causa da desgraça humana que só o amor é capaz de enfrentar.

Com todas as suas dificuldades e defeitos diante do mundo de sonhos que se abre para a protagonista, Mateus (Rafael Guedes) é o herói protetor que luta com as forças que tem para manter o amor de Catirina. Vencendo um a um os obstáculos, Mateus só não salva a mulher amada do vilão mais atual da humanidade: o banqueiro. Para pagar as dívidas e conseguir o empréstimo, Catirina vende ao banqueiro a alma (representada pelo boizinho mágico) e paga caro por isso. Num mundo onde Deus castiga, Mateus fica à beira da morte até ser salvo pelo arrependimento da mulher amada. Transformada pelo amor e o perdão, Catirina paga os pecados com juros, recupera a alma, se vinga de todos os algozes e volta a viver com Mateus no melhor estilo “eu era feliz e não sabia”.

O grupo Ser Tão Teatro se sustenta no humor e no drama para contar a saga de Catirina. O folclore é personagem. Além dos personagens do boi de reis, como o próprio boi, o jaraguá e a cobra, o cordel faz muito bem a ligação tanto nas falas como nas canções da trilha do espetáculo entre as personagens e as ações que se sucedem na história. O cenário discreto não compromete a relação com o sertão, mas o ponto alto é realmente o figurino e os recursos das máscaras que alimentam a imaginação do espectador. O que destoa aos ouvidos do público é o sotaque da protagonista. Embora encare a interpretação com segurança, a atriz Isadora Feitosa é traída pelo chiado que está a quilômetros de distância do sertão nordestino.

Cena de ‘Flor de macambira’, do Ser Tão (PB)

Outro ponto que chama a atenção na peça é a tentativa do grupo de transformar a saga de Catirina numa história atual inserindo elementos da cultura contemporânea ao mesmo tempo em que dialoga com o passado. No texto adaptado pelo grupo aparecem expressões como “Caldeirão do Huck”, “bolsa família”, ”cartão de crédito”, um funk, um banqueiro e um marqueteiro que rivalizam no tempo e no espaço da história com um bicheiro carioca típico dos anos 1970/80 e elementos de um sertão antigo.

Ao final, surge até a escalação da seleção brasileira tricampeã do mundo em 1970. Ficou claro que o mal e os vícios mundanos se sustentam a partir do capitalismo, mas se a intenção era mostrar o recorte de um Brasil historicamente contraditório, com suas transformações e adaptações, faltou clareza no diálogo tempo-espaço dessa trajetória.

.:. Texto produzido no âmbito do Laboratório de Crítica do festival O Mundo Inteiro É um Palco – Ano II, em Natal (RN), aqui.

Ficha técnica:
Texto: Joaquim Cardozo (O coronel de Macambira)
Adaptação: Rosyane Trotta e Ser Tão Teatro
Concepção e Encenação: Christina Streva
Atuação: Cida Costa, Gladson Galego, Isadora Feitosa, Maisa Costa, Thardelly Lima, Winsthon Aquilles, Zé Guilherme, Anderson Lima e Rodrigo Costa e Silva
Assistente de direção: Breno Sanches e Thardelly Lima
Direção musical: Beto Lemos e Zé Guilherme
Letra das músicas: Beto Lemos e Thardelly Lima
Músicas instrumentais: Beto Lemos
Preparação corporal: Juliana Manhães e Valéria Vicente
Coreografia: Juliana Manhães
Treinamento de comicidade: Maíra Kesten
Orientação vocal: Jane Celeste Guberfain
Cenografia e adereços: Carlos Alberto Nunes
Assistente de cenografia: Arlete Rua
Cenotécnico: Marcos Souza
Equipe de adereços: Arlete Rua, Thaís Boulanger, Rodrigo Reinoso, Marcello Villar e Aline Vargas
Modelagem de máscaras: Bruno Dante
Costureira de cenário: Vera Pontes
Pintura de arte: Nilton Katayama e Regina Katayama
Figurinista: Daniele Geammal
Assistente de figurinos: Renata Cortes
Confecção de figurinos: Caio Braga
Costureiras de figurinos: Fátima Araújo e Marlene de Paula
Estagiária de Costura: Gê Bz
Costumização de figurinos: Mírian Meee
Visagismo: Mona Magalhães
Assistente de visagismo: Rodrigo Reinoso
Iluminação: Gladson Galego
Operação de luz: Janielson Silva
Assessoria de imprensa: Calina Bispo
Release: Carla de Gonzales
Fotógrafo: Anderson Silva
Cinegrafista: Luís A. Barbosa
Ilustrações: Bruno Dante
Projeto Gráfico e Hotsite: Márcio Miranda
Produção e administração: Ser Tão Teatro
Produção executiva Turnê: Renata Mora
Produção turnê: Samara Martins

Jornalista nascido em Brasília e radicado em Natal (RN) desde 1998. Foi repórter do Diário de Natal, Tribuna do Norte e repórter especial do Novo Jornal. Também coordenou o núcleo de audiovisual e novas mídias da secretaria municipal de Cultura em Natal. É autor da biografia O Homem da Feiticeira - a história de Carlos Alexandre (edição do autor, 2014).

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