Reportagem
Em 1931, falando ao ator norte-americano Joshua Logan, que passou oito meses sob sua orientação em Moscou, Stanislavski fustigava a canonização que já o espreitava em vida. “Nosso método nos convém porque somos russos. Aprendemos na raça, tateando, renovando as noções gastas e tentando nos aproximar o mais possível da verdade. Vocês devem fazer o mesmo. Mas do jeito de vocês, não imitando-nos. […] Você está aqui para estudar, não para copiar. Os artistas devem aprender a pensar e sentir por eles mesmos e encontrar novas formas”.
A descanonização do pensamento e da prática do teatrólogo, diretor e ator russo Constantin Stanislavski (1863-1938) é sublinhada pela pesquisadora francesa Marie-Christine Autant-Mathieu na abertura do “Seminário 150 anos de Stanislavski” realizado em São Paulo em dezembro de 2013 e cujas palestras e debates integram o livro Stanislavvski revivido (Giostri Editora), a ser lançado na terça-feira (9/12) na SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, a partir das 19h, mesmo espaço da Praça Roosevelt que lotou todas as três noites daquela jornada (além de uma oficina matinal) agora editada e apresentada à comunidade teatral – material que atualiza os pressupostos do Sistema de Stanislavski, base reconhecida como fundamental à pedagogia da atuação.
“Ao insistir sobre o lado prático de seu ensino, Stanislavski almejava que seus escritos servissem de livro de cabeceira ‘para todas as nações, pois todo mundo tem a mesma natureza[…]’. Mas evitava dar-lhes um valor absoluto. O Sistema não é um livro de filosofia, avisava, e sim uma obra prática, fundamentada na experiência, e de comprometimento dentro de um programa de trabalho: ‘Quando a filosofia começa, o ‘sistema’ para”, discorre Marie-Christine sob o título O que podemos, ainda hoje, aprender do teatro e do sistema de Stanislavski. Ela é historiadora de teatro especialista em cena russa e, sobretudo, dedicada à gênese e distribuição do Sistema Stanislavski na Rússia e nos Estados Unidos. Mais adiante, publicamos um trecho de sua palestra, ela que também é diretora de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e leciona na Paris III – Sorbonne.
Organizado por Ney Piacentini e Paulo Fávari, o livro abarca ainda os encontros com o diretor da Cia. do Latão e professor da USP Sérgio de Carvalho (Um trabalho sobre Stanislavski); a diretora da Cia. Teatro Bagalan e também professora da USP Maria Thais (Stanislavski e Meierhold: simetrias assimétricas – da pedagogia à cena, da cena à pedagogia); o diretor do Grupo Folias D’Arte, Marco Antônio Rodrigues (Não fosse a incongruências nas idades e uma ou outra questão referente às diferenças nas línguas, qualquer um poderia jurar que Stanislavski era brechtiano); o pesquisador, tradutor e criador paulistano Diego Moschkovich, o mais jovem entre os debatedores (Reforma ou revolução: algumas reflexões sobre a atualidade do Sistema de Stanislavski); e, por fim, o diretor do Grupo Tapa, Eduardo Tolentino, também tradutor (Das primeiras leituras de Stanislavski à prática teatral).
Complementam a publicação as perguntas e respostas entre o público e os palestrantes, discutidas durante o seminário, além de uma série de exercícios stanislavskianos, retirados do livro La ligne des las actions physiques, de Marie-Christine Autant-Mathieu, com tradução inédita para o português de Ana Paula Zanandréa. A introdução e o prefácio são de Ivam Cabral e Piacentini, respectivamente.
Trecho
“Em 1933, para seus setenta anos, Stanislavski é recoberto de flores e presentes. Uma atriz, que veio felicitá-lo, pede que diga algumas palavras de lembrança. Ele rasga o papel de embrulho de um buquê de flores para escrever as seguintes palavras-testamento:
Vivi muito. Vi muito. Fui rico. Depois, pobre. Viajei. Tive uma linda família, filhos. A vida os dispersou pelo mundo. Procurei a glória. Encontrei-a. Conheci as honrarias, fui jovem. Envelheci. É preciso morrer logo.
Agora me perguntem, em que consiste a felicidade na Terra?
No conhecimento. Na sua busca, pela arte, pelo trabalho.
Ao conhecer a arte em si, conhecemos a natureza, a vida do mundo, o sentido da vida, conhecemos a alma, o talento!
Não há maior felicidade.
E o sucesso? Perecível.
É um tédio receber esses parabéns, responder a esses cumprimentos, escrever cartas de agradecimento, ditar entrevistas.
Não, melhor ficar em casa e seguir de dentro a criação de um novo personagem.
20 de janeiro, 1933. 70 anos de vida.
A morte lhe dará mais cinco antes de levá-lo.
***
Em 1953, Bertolt Brecht, até então um ferrenho adversário do trabalho de Stanislavski, reconsidera suas posições e extrai em 9 pontos “o que podemos aprender, entre outras coisas, do teatro de Stanislavski”. Essa reviravolta traduz a pertinência das pesquisas do mestre russo, uma pertinência que a mitificação e deformação da sua herança, na URSS como no resto do mundo, mascararam e mascaram ainda hoje.
Ator de sucessos que termina porém seu percurso na gaiola dourada e estreitamente vigiada de um estúdio pedagógico; militante do realismo mas virtuose da fantasia, sempre na busca de verdades eternas, porém refreado nos últimos vinte anos do seu percurso pela censura das suas palavras e dos seus escritos: é difícil cercar Stanislavski, e hoje deve-se reler sua obra à luz dos novos materiais de arquivos.
Desse modo “desempoeirado”, “descanonizado”, “recontextualizado”, o artista aparece-nos mais próximo, e suas pesquisas, mais concretas, ricas em ensinamentos.
1.1. No início, um encenador ditador, depois um guia dos seus atores.
A posteridade manteve o Stanislavski diretor de ator, o inventor do Sistema, e deixou de lado a inventividade do encenador.
No entanto, em 1902, quando o Teatro de Arte de Moscou se instala na Rua Camerguerski, ele dispõe de instalações técnicas extremamente eficientes, o que permitia a composição de espetáculos cenicamente inovadores. Stanislavski adora os truques. Em 1900, para A filha da neve, de Ostrovski, ele instala em cena um córrego de três metros de largura, provoca uma avalanche… Em O pássaro azul, de Maeterlinck (1908), materializa o mundo das Plantas, dos Animais, dos Mortos, os reinos da Noite e do Tempo, a alma da Água, do Pão e do Fogo. O pintor Victor Simov, companheiro dos primeiros tempos, contribui com os seus cenários a criar o clima propício, particularmente nas peças de Tchekhov.
Durante os primeiros oito anos de existência do Teatro, Stanislavski vai impor aos atores a sua concepção espacial e emocional das peças – meticulosamente registrada nos “Cadernos de encenação”.
Uma parte da crítica o considera então um encenador que esmaga o ator, privando-o de sua individualidade e reduzindo-o à função de marionete ou de aluno amador. Mas esse carimbo de ditador, que lhe aplicam no início do Teatro de Arte, vai desaparecer assim que Vsevolod Meierhold, após a Revolução de Outubro, impõe o encenador “autor do espetáculo”, que utiliza todos os componentes da representação, texto e ator incluídos, como mais um material a ser acoplado e estruturado.
Bem ao contrário, a partir do momento em que começa a elaborar seu Sistema de formação do ator (desde 1906), Stanislavski não precisa mais dirigi-los, e sim guiá-los, ajudá-los. O Sistema os torna autônomos, criadores. É isso que mostrará ao encenador alemão Herbert Graf:
[…] pra nós, o encenador é um parteiro que auxilia o ator dando à luz uma nova criação. Enquanto que para meus colegas Meierhold e Taïrov, o encenador encabeça todo o organismo teatral, age enquanto senhor absoluto, e o ator é somente um material entre as mãos do encenador.
No início do seu percurso, para a preparação das encenações de Tchekhov, de La locandiera, de Goldoni, do Doente imaginário, de Molière, de Um mês no campo, de Turgueniev, Stanislavski trabalhava na mesa com seus atores. Juntos, analisavam e decupavam o texto em sequências significantes para a ação cênica, constituíam biografias para os personagens. Aprofundavam o sentido da obra, impregnavam-se dela antes de ir testar o fruto de suas reflexões no palco.
Mas, aos poucos, Stanislavski introduz as improvisações antes da análise do texto, e torna esse trabalho sistemático nos anos 1930, quando trabalha em cima da “linha das ações físicas”.
Depois de apresentar os maiores autores modernos do seu tempo (Ibsen, Hamsun, Hauptmann, Tchekhov, Gorki, Maeterlinck), depois de ficar tentado pela criação coletiva nos anos 1910 (pede a Gorki que lhe escreva enredos à maneira da commedia dell’arte), ele se foca, em período soviético, nos clássicos, notadamente os russos – Gogol, Ostrovski, Tolstoi, Griboiedov.
Ele confia as peças didáticas soviéticas a seus jovens assistentes. Autor do célebre adágio “quando você interpreta um vilão, procure seu lado bom”, Stanislavski mostra-se incapaz de dirigir aquelas obras tendenciosas. Sua aversão pelas obras militantes já é antiga. Já em 1901, quando Gorki propôs Os pequenos burgueses ao Teatro de Arte, mostrou-se desconfiado com o engajamento revolucionário do escritor, afirmando que o militantismo ideológico era incompatível com a arte.
Poderemos notar que no meio dos anos 1920, para quebrar os hábitos dos seus atores, atolados num jogo revivido, estático e psicologizante, Stanislavski recorre a peças leves, comédias (As bodas de Fígaro), até mesmo a vaudevilles e melodramas (As duas órfãs), a fim de exercitá-los a um jogo ritmado, rápido, físico.
As pressões ideológicas se acumulam e levam Stanislavski a renunciar ao trabalho de encenação. Em 1935, ele se recolhe no trabalho pedagógico.”
.:. Trecho do livro Stanislavski revivido (Giostri Editora, 128 páginas, R$ 34).
Serviço (lançamento):
Quando: terça-feira, 9/12, às 19h
Onde: SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco (Praça Rooselvet, 210, Consolação, São Paulo, tel. 11 3775-8700).