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Crítica

Coletivo Alfenim prospecta Machado

6.12.2014  |  por Rafael Duarte

Foto de capa: Pablo Pinheiro

O que nos resta do experimento apresentado pelo Coletivo de Teatro Alfenim (PB) sobre fragmentos da obra de Machado de Assis é dizer que o romance Quincas Borba é mais atual do que a própria realidade. Apresentado durante o festival O Mundo Inteiro É um Palco, em Natal, o Ensaio sobre o humanitismo revela um Machado irônico, contestador e, sobretudo, sarcástico. Estivesse hoje entre nós, provavelmente o patrono da Academia Brasileira de Letras estaria escrevendo sobre as mesmas contradições de um país hipócrita e bonito por natureza.

A criação traz a história de Rubião, discípulo ingênuo de Quincas Borba, um burguês escravocrata e filósofo de botequim que dá o próprio nome ao cachorro de estimação inebriado pelo Humanitismo, uma espécie de nova filosofia criada por ele. Com a morte do mestre, Rubião recebe toda a herança, mas é obrigado a zelar pelo Quincas de quatro patas.De tanto usufruir da alta sociedade carioca, o sujeito enlouquece. O texto discute a diferença de classes, o amor, a hipocrisia e a psicanálise.  O grupo joga em cena Quincas Borba, mas toca em outros romances de Assis. Há umas pitadas de O alienista e de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Impossível não relacionar o tratamento dado aos negros no final do século 19, tempos de escravidão, à forma como a sociedade de hoje ainda trata os excluídos pela cor do dinheiro. Num dos primeiros diálogos da peça, entre Quincas e seu discípulo Rubião, não há quase diferença entre os preconceitos do passado e do presente. É a sobreposição do centro sobre a periferia, da zona sul sobre a zona norte.

Um Machado contemporâneo surge pelas mãos do dramaturgo Márcio Marciano logo no prólogo da peça, fora do teatro, quando ele nos apresenta o julgamento e a condenação por enforcamento de um negro representado por um ator branco e um carrasco representado por uma atriz. Esqueçam as cores que os olhos veem. Somos todos negros e condenados à morte.

Incrível também a semelhança guardada entre a burguesia de antanho e a nossa high society. Aparências, futilidades e nada mais que a verdade.

A peça tem cenas saborosas, como a transformação do Quincas homem no Quincas cachorro usando o simples manuseio do chapéu. Apesar de haver um protagonista em cena, os atores se equivalem. A música pega o espectador pelo ouvido de início, mas peca pelo exagero. O tema motivou um longo debate com os artistas após a sessão, no Barracão Clowns. Também faltou explorar mais a história do cachorro, ótima sacada de Machado que simplesmente sumiu de cena. Valeu como ensaio e introdução. Mas é um começo.

.:. Texto produzido no âmbito do Laboratório de Crítica do festival O Mundo Inteiro É um Palco – Ano II, em Natal (RN), aqui.

.:. O site do Coletivo de Teatro Alfenim, aqui.

Experimento visa a ‘Memórias de um cão’ em 2015

Ficha técnica:
Texto e direção: Márcio Marciano
Atuação: Adriano Cabral, Lara Torrezan, Mayra Ferreira, Nuriey Castro, Paula
Coelho, Ricardo Canella, Suellen Brito, Vítor Blam e Zezita Matos
Pesquisa: Coletivo de Teatro Alfenim
Direção musical: Mayra Ferreira e Nuriey Castro
Produção: Gabriela Arruda
Realização: Coletivo de Teatro Alfenim

Jornalista nascido em Brasília e radicado em Natal (RN) desde 1998. Foi repórter do Diário de Natal, Tribuna do Norte e repórter especial do Novo Jornal. Também coordenou o núcleo de audiovisual e novas mídias da secretaria municipal de Cultura em Natal. É autor da biografia O Homem da Feiticeira - a história de Carlos Alexandre (edição do autor, 2014).

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