Crítica
Um dos destaques da produção teatral brasiliense em 2014 foi o show cênico musical Desbunde, com direção de Juliana Drummond e Abaetê Queiroz, que realizou sua estreia no Teatro Dulcina e fará nova temporada neste mês de janeiro. O trabalho é inspirado na história de grupos como Dzi Croquettes (RJ) e Vivencial Diversiones (PE) – este uma referência afetiva para o cineasta Hilton Lacerda na criação de Tatuagem, de 2013, assim como aquele foi retratado no documentário de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, de 2009. Ambos imprimiram na década de 1970 a marca da irreverência, da crítica e da ousadia em seus números artísticos, incomodando a moral e os bons costumes, além (e também por isso) da polícia. Os atores de Desbunde destilam, por cerca de duas horas, entre purpurinas, canções, danças e palavrões, o seu libelo contra a opressão do corpo e da mente diante de uma plateia acalorada que responde e se envolve a cada provocação.
Talvez eu pudesse apontar um ou outro aspecto da montagem que carece de ajustes, como a relação entre ritmo e dramaturgia que, em certos momentos, parece deixar “afrouxar” o fio tenso e teso que os atores mantêm quase todo o tempo. Ou, ainda, considerações sobre a atuação nos momentos mais dramáticos que se configuram. Entretanto, o nível de entrega dos intérpretes, evidenciado no conjunto de atuações viscerais com abertura para improvisos e o risco presente no jogo vivo entre atores e espectadores me faz ter o desejo de discutir outros aspectos dessa montagem. E creio que nenhuma das possíveis fragilidades que possam ser apontadas diminuiria a potência desse trabalho contagiante. Efetivamente algo nos acontece!
Na dramaturgia proposta, com roteiro de Sérgio Maggio, temos um ambiente decadente, a fictícia boate Desbunde. É nesse local que conhecemos as histórias desses artistas, o grande líder do lugar, Claudia Valeria, um artista mais velho com ares de “fim de carreira” e, ao seu lado, Saquarema Satanás, Petit Du Buá, Savana Sargentelli e Marquesa, um grupo de belos e jovens homens que cantam, dançam e encantam. Percebe-se que as condições financeiras dessa trupe não são as melhores. Há uma precariedade presente na cenografia, nos figurinos e no próprio espaço cênico escolhido, o Teatro Dulcina. Diferentemente dos grandes musicais que ocupam salas em São Paulo ou no Rio de Janeiro com altos investimentos e tecnologia, neste caso, encontramos uma montagem despretensiosa e erguida com poucos recursos, o que resulta também num interessante contraste diante da altivez e glamour desses personagens. A narrativa revela aos poucos a alternância entre o plano da memória e da realidade e convida o espectador a ir estabelecendo possíveis nexos. É nesse contexto que o elenco coeso e vibrante dá vida a personagens que celebram a liberdade de expressão, a busca de sentido para a vida e que compartilham suas dores e amores.
É interessante notar como, em 2014, o corpo ainda é visto muitas vezes como tabu, gerando provocação e constrangimento. Bundas expostas, outras vezes paus à mostra, beijos lânguidos, e assim se desenha um vetor do trabalho que é a própria “des-proibição” do corpo, do desejo, da sensualidade, da sexualidade. Para alguns, talvez, Desbundefique apenas nessa primeira camada da pele. E isso não é pouco, já cumpriu um papel importante ao reafirmar que o corpo não é prisão, não é pecado, não precisa ser domesticado. O corpo é um discurso poético e plural no mundo!
Cena do “show cênico musical” de Brasília
Outras camadas da pele dessa montagem me afetaram bem mais que qualquer bunda gostosa. E foi assim, camada após camada, que Desbunde ganhou para mim tantos contornos, bastou lembrar de alguns fatos: dei-me conta de que estávamos no Teatro Dulcina, que luta pela sobrevivência como o mais terminal dos enfermos num leito de UTI, exemplo dessa batalha é o fato de alugar sua pauta aos domingos para cultos religiosos; lembrei que aquele espaço é fruto de um esforço incondicional da atriz Dulcina de Moraes (1908-1996), que travou inúmeras batalhas para construir ali, no Planalto Central, uma faculdade de artes e um teatro, e que esse sonho definha abandonado pelo poder público, assim como o tempo que transforma em ruína seus antigos figurinos, fotos e cartas guardados num abafado camarim ou as cadeiras e o palco do próprio teatro; em seguida, constatei que esse teatro está localizado no Setor de Diversões Sul, criado originalmente para ser a parte da cidade destinada à vida cultural, aos cinemas, teatros, cafés e livrarias, dos quais apenas o Teatro Dulcina ainda não se transformou completamente em templo religioso.
Um setor que um dia abrigou as boates alternativas, a cena LGBT, o desbunde, mas que também foi abandonado e nem mais o título de marginal parece ser capaz de carregar, hoje é mais um condomínio de lojas, escritórios e igrejas evangélicas. Não fosse a presença da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, da Associação Cultural Ossos do Ofício, dos encontros dos praticantes de skate e algumas outras iniciativas, esse espaço pouco teria de vida cultural, artística, de encontro, de festa. Por fim, ainda pude recordar que estávamos na capital do Brasil, erguida sob a égide do modernismo, a promessa de um país melhor, o lugar onde seriam tomadas as decisões mais importantes da nação, uma cidade que sonhou, na sua concepção, em unir, mas viu nascer a separação quando anulou a história de Goiás anterior ao concreto ou quando viu seus construtores habitarem loteamentos distantes do Plano Piloto, pois não havia lugar para os mais pobres. E foi aí que o Desbunde,idealizado de modo apaixonado por Juliana Drummond, doeu em mim. E não teve cu, pau ou beijo capaz de me desviar da ideia de que essa peça falava também de quando os nossos sonhos e utopias vão pouco a pouco se tornando ruína, decadência e abandono em meio a toda a purpurina que um dia os impulsionou. Considerando todos esses aspectos, arriscaria dizer que a escolha do espaço para a realização desta obra se revelou como um elemento singular na sua produção de sentido e na sua potência política.
O Brasil já não é mais aquele da implacável ditadura que bateu, prendeu e matou; ela já não é o inimigo que sufoca artistas e intelectuais, como aqueles que inspiraram a própria criação brasiliense. Porém, e como diria o nosso saudoso Plínio Marcos, “sempre tem um porém”, são múltiplas as camadas de sentido que essa peça, precisamente nesse local e nessa cidade é capaz de produzir.
Nos momentos finais do espetáculo somos ainda confrontados com o discurso do candidato à Presidência da República nas eleições de 2014, Levy Fidelix, no seu depoimento de ódio aos homossexuais. Naquele momento nos damos conta de que a incompreensão e a violência da ditadura ainda habitam sim nossas ruas, casas e televisões. Para aqueles que viram em Desbunde um teatro datado, com pouco endereçamento ao nosso tempo, eu discordo veementemente. Num país que mata tantos homossexuais, negros e mulheres, onde os teatros são transformados em igrejas e fazer arte se torna cada vez mais uma árdua batalha para não deixar um sonho definhar – me desculpem, mas não pode haver data ou tempo certo para todo grito de liberdade e celebração ao prazer, à festa, ao amor, ao corpo e ao encontro!
E para quem só conseguiu ver em Desbunde um déjà vu das décadas de 1960 e 1970 ou ainda um desfile superficial de corpos, músicas e “bichices”, fica aqui o convite para tocar e passar a língua em outras partes desse corpo-espetáculo. E, para o grupo, a torcida para que essas diferentes camadas de sentido apontadas acima não se percam e, quem sabe, até ganhem mais contorno no seguir das temporadas e mesmo nos outros espaços que Desbunde venha a armar sua poesia.
Salve a festa, o tesão e a purpurina que nos ajudam a seguir lutando por nossos sonhos, mesmo quando tudo em volta se mostra árido, careta e pré-fabricado!
Salve a potência política do desbunde!
Precariedade de recursos contrasta altivez e glamour
Serviço:
Onde: Teatro Plínio Marcos – Complexo Funarte (Eixo Monumental, Setor Divulgação Cultural, atrás da Torre de TV, tel. 61 3322-2076).
Quando: quinta a sábado, às 21h; domingo, às 20h. Nova e curta temporada de 22 a 25/1/2015.
Quanto: R$ 20.
Ficha técnica:
Idealização e argumento: Juliana Drummond
Direção: Juliana Drummond e Abaetê Queiroz
Desenho de luz: Abaetê Queiroz
Roteiro: Sérgio Maggio
Pesquisa musical: Sérgio Maggio e Juliana Drummond
Atores-criadores: Tullio Guimarães, Roustang Carrilho, Kael Studart, Tulio Starling e Guilherme Monteiro
Ator hostess: Leonardo Shamah
Coreografias: Juliana Drummond e Lívia Bennet
Preparação corporal: Lívia Bennet
Direção de arte, cenário e figurino: Maíra Carvalho
Assistente de arte: Marcus Takatsuka
Contrarregra: Rodolfo Godoi
Cenotécnico: Rodrigo Lelis
Edição e mixagem das trilhas sonoras: Marcelo Dal Col e Sasha Kratzer
Design de som: Marcelo Dal Col
Design e identidade visual: Jana Ferreira
Fotografia de divulgação: Diego Bresani
Fotografia de cena: Sartoryi e Milena Vasconcelos
Direção de produção: Guinada Produções
Produção executiva e assessoria de imprensa: Nathalie Amaral
Assistente de produção: Leonardo Shamah
Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.