Crítica
18.1.2015 | por Mateus Araújo
Foto de capa: Luciana Corso Galiotto
A verdade sobre os fatos pouco importa. O que é fundamental no convencimento do interlocutor é a maneira de como uma história é contada – ou, aliás, bem contada. É dessa perspectiva que parte Maldito coração, me alegra que tu sofras, monólogo da atriz Ida Celina, dirigido por Mauro Soares e encenado nos dias 15 e 16/1 no Teatro Marco Camarotti. A peça, umas das três atrações que marcaram a abertura do Janeiro de Grandes Espetáculos, no Recife, é um apurado exercício de dramaturgia reforçado por uma interpretação precisa e humor de bom gosto, na narrativa de uma amor doloroso e engraçado.
O texto escrito pela gaúcha Vera Karam e montado desde 1996 coloca a plateia na função de cúmplice do desabafo de uma mulher sobre sua curiosa relação de amor com um homem desconhecido. A personagem recria a história a cada relato; reconduz, revive, inventa, ratifica e corrige várias histórias no desejo de afirmar um sentimento impreciso até pra ela. O texto é perspicaz justamente por possibilitar à atriz e à plateia um jogo cênico curioso e instigante. A dramaturgia é conduzida com simplicidade do início ao fim da peça, de maneira que a sua resolução surpreende nos últimos instantes da fábula.
Os 19 anos vivendo a mesma personagem dá segurança visível a Ida, dona de uma interpretação despojada e envolvente. É certo que algumas marcações que utilizam o banco de balanço (único objeto de cenário), no qual a atriz se deita e se contorce, causam desconforto porque parecem atrapalhar Ida. O que não prejudica, claro, sua desenvoltura, mas que poderiam ser revistas pela direção. Ida Celina tem olhares certeiros, gestos que pontuam sua fala com o devido hiperbolismo que cabe ao texto e ao papel, além de jogar muito bem com os limites entre o real e o fantasioso. É uma atriz dona de humor sagaz e uma emoção comedida.
A feliz opção de Mauro Soares foi exatamente de se apropriar do talento de Ida para conduzir a narrativa. Dando ênfase ao texto inteligente, o diretor opta por um cenário limpo, uma luz simples e trilha sonora quase inexistente. Quem assiste à peça se sente numa conversa com a personagem, se reencontra e se identifica em muitas das situações relatadas por ela e até se compadece das relatos. É um espetáculo curto, com início, meio e fim bem definidos, ainda que a narrativa não siga uma linearidade bem definida.
Em Maldito coração, me alegra que tu sofras, o que vale e o que importa é, sim, a boa história, contada de maneira criativa e convincente.
.:. Publicado originalmente no Jornal do Commercio, Caderno C, em 17/01/2015.
Ficha técnica:
Atriz: Ida Celina
Texto: Vera Karam
Direção: Mauro Soares
Cenário e figurino: Alexandre Magalhães e Silva
Criação de luz: João Acir
Iluminador: João Fraga
Trilha sonora: Vera Karam
Fotos: Fernando Zugno/Cláudio Fachel
Produção: Juliano Canal
Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).