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Reportagem

O amante lítero-dramático

27.1.2015  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Martino Piccinini

Passou praticamente despercebido o lançamento, em novembro de 2014, de um livro que recupera parte fundamental da história do Estado: o Dicionário de autores da literatura dramática do Rio Grande do Sul, com informações sobre dramaturgos que escreveram desde o século 19 e iluminam as principais questões políticas e sociais da época. Seu autor, o pesquisador Antenor Fischer, 55 anos, tem se debruçado há 12 anos sobre o tema em uma série de estudos de proporção sem precedentes. Até então, a dramaturgia ocupava um espaço periférico nas histórias da literatura, que costumam enfocar a prosa e a poesia.

Todo esse esforço veio desafiar o mito, ainda muito presente, de que a dramaturgia gaúcha não seria representativa por causa da escassez de autores. Fischer provou o contrário: a produção de textos teatrais, desde o século 19, é constante no Rio Grande do Sul, apenas estava escondida nos escaninhos empoeirados de bibliotecas e acervos históricos. O pesquisador esteve em Pelotas, Rio Grande, Caxias do Sul, Santa Maria, São Leopoldo e Rio de Janeiro. Caberá aos próximos estudiosos a discussão sobre a qualidade desses textos.

Analista aposentado da Caixa Econômica Federal desde 2010, Fischer realizou mestrado, doutorado e dois pós-doutorados sobre o assunto na PUCRS e na UFRGS. Até agora, no entanto, permanece um nome relativamente desconhecido na cena teatral. Não leciona, não faz críticas e não havia publicado nada sobre teatro antes da chegada de seu dicionário – exceto, claro, seus trabalhos acadêmicos, disponíveis nas bibliotecas universitárias. Ele explica: “Nunca tive interesse em ganhar dinheiro com isso. É por amor ao teatro. Essa lacuna me incomodava. Li umas 30 histórias da literatura brasileira, onde se encontravam, invariavelmente, apenas dois autores teatrais gaúchos: Araújo Porto Alegre e Qorpo-Santo. Erico Verissimo também faz referência a Ernani Fornari e Walmir Ayala.”

O dicionário de autores foi editado de forma independente – ele criou uma microeditora, a FischerPress – com uma tiragem de apenas cem exemplares, dos quais já distribuiu ou vendeu quase a metade. Preferiu pecar pelo excesso: o livro inclui verbetes até mesmo sobre autores que escreveram apenas uma peça. Sua intenção foi criar uma fonte para futuros estudiosos, indicando o acervo onde as peças podem ser encontradas, a data em que (e se) foram encenadas, as críticas publicadas na imprensa e outros dados. Será que ele pretende seguir pesquisando? “Não sei. Talvez eu já tenha feito minha parte. Queria fazer uma antologia do teatro nativista gaúcho do século 20, mas possivelmente vou deixar para outros pesquisadores.”

Para Clóvis Massa, professor do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, a investigação de Fischer impressiona “pelo fôlego e pela abordagem realizada dentro dos estudos teatrais”: “Ainda que não devam servir como únicas fontes de pesquisa, pois seus dados precisam ser averiguados, e as informações, cotejadas devido ao grande escopo das publicações e, por vezes, da fragilidade dos critérios de análise utilizados, suas pesquisas merecem respeito e louvor pelo resgate feito a nossos autores atualmente esquecidos.”

Viagem aos primórdios do teatro no RS

O pesquisador Antenor Fischer dedicou um de seus dois pós-doutorados à compilação de uma antologia de peças teatrais do século 19. São oito volumes que descortinam uma nova forma de conhecer a própria história do Rio Grande do Sul, já que o teatro era um meio privilegiado de veiculação de ideias – vale lembrar que o cinema estava em seus primórdios. Apareceram, em cena, temas como a defesa do abolicionismo, o confronto entre maçonaria e Igreja, a questão do divórcio e o ideal republicano, entre outros. Embora os volumes do trabalho de pós-doutorado de Fischer estejam apenas disponíveis em formato impresso na biblioteca da PUCRS, ele tem o desejo de reunir os oito ensaios introdutórios em um livro à parte para atingir um público mais amplo. Zero Hora destaca, a seguir, as principais descobertas do pesquisador.

A obra de Antenor FischerReprodução

A obra de Antenor Fischer

Primeiros autores

Antes das pesquisas de Antenor Fischer, segundo ele, costumava-se considerar Araújo Porto Alegre o primeiro autor de teatro do Rio Grande do Sul, com seu Prólogo dramático – que, no entanto, foi produzido na Europa em 1836 e publicado um ano depois no Rio de Janeiro. O pesquisador descobriu outros candidatos a pioneiros da dramaturgia gaúcha: um anônimo que escreveu O político, e liberal, por especulação em 1832 (publicado dois anos depois); José Manuel Rego Vianna, com o drama Quarenta anos ou O negociante colono, escrito em 1836 (que não se sabe se foi produzido em Portugal ou no Rio Grande do Sul); e Manuel José da Silva Bastos, autor de O castelo de Oppenheim ou O tribunal secreto (1849), primeiro autor nascido no Estado a publicar aqui. Uma novidade apareceu recentemente para complicar a história: Fischer tomou conhecimento da existência do texto da peça O amor d’estranja (1811), do qual havia apenas ouvido falar, de autoria de Hipólito José da Costa, que assumiria, portanto, a primazia.

Desonra como tema

Se no teatro grego antigo era a desmedida que provocava a tragédia, em diversas peças do teatro gaúcho do século 19 a função cabia à desonra. Era assim também em peças produzidas em outros lugares do Brasil, mas, no Estado, a importância da honra era “mais arraigada”, segundo Fischer. As causas mais frequentes de desonra entre os personagens vinham por meio de calúnia ou difamação, perda da castidade da filha solteira e, no caso dos homens, falência nos negócios, às vezes em decorrência do vício pela jogatina. O adultério feminino também era severamente punido na dramaturgia. No mundo oitocentista, a perda da honra representava o fim do convívio social, como aparece em peças como A calúnia (1896), de Anna Aurora do Amaral Lisboa.

Jesuitismo na mira

Em uma época na qual o poder da Igreja se misturava com o do Estado, algumas peças colocavam em cena críticas à alienação e à repressão que os autores identificavam na institucionalização do catolicismo. Fischer identificou que havia um embate político entre a maçonaria e a Igreja, o que se refletiu em artigos na imprensa e também nas peças de teatro escritas no século 19, em que apareciam críticas ao “fanatismo religioso” – embora os dramaturgos não fossem necessariamente membros da maçonaria. O alvo era o que os autores consideravam um excesso de poder da Igreja. Isso fica claro em obras como Adelina (1879), de Damasceno Vieira, em que um personagem faz um brinde “à prosperidade da Maçonaria brasileira e à extinção dos jesuítas”.

Divórcio em cena

O divórcio foi permitido em lei no Brasil apenas em 1977, mas no século 19 algumas peças já criticavam a indissolubilidade do casamento. Foi o caso de O marido de Ângela (1884), de Joaquim Alves Torres; Arnaldo (1886), de Damasceno Vieira; e Janina (1900), de Mário de Artagão. Uma nota no preâmbulo da edição da peça de Artagão indicava que “o autor pressupõe uma atualidade em que estejam vigorando leis sobre o divórcio absoluto”. Sabe-se que o divórcio tinha mais críticos do que defensores na época, o que não impediu os dramas de abordarem suas possíveis consequências em uma sociedade na qual a mulher praticamente não trabalhava, senão como dona de casa – e, portanto, teria dificuldade de se sustentar.

O drama abolicionista

Não apenas o teatro foi um meio de veiculação de ideias abolicionistas, como a renda obtida com algumas encenações foi revertida para a compra da liberdade de escravos. O teatro era, então, um verdadeiro meio de mudança social. Foi preponderante nisso o papel da Sociedade Partenon Literário, grupo que reuniu homens e mulheres interessados em arte entre 1868 e a década de 1880 em Porto Alegre. Fischer observa que o debate pelo fim da escravidão nas peças da época era feito, principalmente, por personagens brancos. Caso interessante foi o do dramaturgo Arthur Rocha, filho de um bilheteiro de teatro, que criou heróis negros, chegando a interpretar um deles em uma representação de sua peça José (1877).

O ideal republicano

O Partenon Literário estimulou o que se pode chamar de um “teatro de tese”, aquele que é utilizado para defender uma causa. Ao lado do abolicionismo, o ideal republicano estava presente em peças como Escrava e mãe (1880), de José Alves Coelho da Silva; Lucinda (1875), de Hilário Ribeiro; e Estrelas e diamantes (1874), de João da Cunha Lobo Barreto. Era o clamor pelo fim da monarquia em um momento no qual a corrupção grassava nas diversas instâncias de poder. Os gaúchos se juntaram à causa nacional depois que o sonho de uma República Rio-Grandense foi solapado. Segundo Fischer, o ideal republicano não chega a configurar o tema principal das peças, mas a discussão está presente em diferentes trechos.

A mulher como autora

Na esteira de pesquisas acadêmicas que, nas últimas décadas, têm recuperado textos literários de autoria feminina, Fischer afirma que a primeira mulher gaúcha a escrever uma peça de teatro foi Maria da Cunha, que publicou o drama Uma lágrima derramada ou O ramo de violetas e a comédia A flor do deserto, ambas em 1887. Sua obra é caracterizada por um romantismo exacerbado. Já no período republicano, Andradina de Oliveira escreveu três dramas em 1891 e, anos depois, uma comédia e um drama histórico. Mais realista, aproximando-se do naturalismo, Anna Aurora do Amaral Lisboa é outra autora representativa da época, com textos marcados pela crítica à hipocrisia social, especialmente dos homens que supostamente faziam de tudo para levar as moças de família para o mau caminho.

A comédia

Conforme uma estimativa de Fischer, em torno de um terço das peças gaúchas do século 19 era do gênero comédia. Entre as publicadas, foram cerca de 50, incluindo as 17 assinadas por Qorpo-Santo. Vale notar que ainda vigorava, na época, a posição secundária da comédia em relação aos gêneros considerados sérios, valoração que remonta a Aristóteles. Mesmo assim, era difícil encontrar um autor de drama que não tivesse se aventurado também pelo humor. Embora não seja possível identificar um tema fundamental nas comédias gaúchas do século 19, as tramas muitas vezes giravam em torno de conflitos decorrentes de namoro e casamento, como ciúme e engano. Molière era uma influência presente entre os dramaturgos do Estado.

Serviço:
Dicionário de autores da literatura dramática do Rio Grande do Sul
Autor: Antenor Fischer (FischerPress, 350 páginas)
Quanto: R$ 70 (já incluídas despesas de envio para todo o Brasil). Para adquirir, entre em contato pelo e-mail fischerpress@gmail.com

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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