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Reportagem

Beckett legítimo

12.3.2015  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Jean-Charles Mandou

Não seria exagero dizer que Sandra Dani valeu-se de quatro décadas como atriz para viver a palavrosa e inesquecível Winnie, de Oh, os belos dias, de Beckett, peça que estreia temporada hoje (12/3) no Teatro Renascença, em Porto Alegre. Antes, o público da capital havia tido apenas uma curta oportunidade de assistir a esta montagem paulista do diretor Rubens Rusche, em três sessões no Porto Alegre Em Cena de 2013.

Winnie é um desses papéis definidores de uma trajetória, constituído de um monólogo de cerca de uma hora e meia, repleto de reflexões e de um humor sutil. No primeiro ato, ela está enterrada até a cintura; no segundo, até o pescoço. A todo momento, dirige-se ao silencioso marido Willie, interpretado por Luiz Paulo Vasconcellos, casado com Sandra fora dos palcos. Artistas de longa trajetória no teatro gaúcho, eles passaram uma temporada intensa em São Paulo, em 2013, para criar a peça junto com Rusche.

“É a culminância de uma carreira. Sinto que vem em uma hora certa para mim, com minha vivência”, afirma Sandra. “A dramaturgia do Beckett inaugura uma nova linguagem, que tira os personagens da comodidade do teatro realista e os joga em uma situação como essa.”

A atriz criou sua Winnie com a meticulosidade de um músico que interpreta uma partitura: teve de responder não apenas às demandas do dramaturgo, que costumava ser muito específico nas anotações de cena, como também do diretor. Nos ensaios, os silêncios de suas falas chegavam a ser calculados em segundos. Depois que as orientações foram introjetadas, ela pôde, enfim, se soltar.

“Basicamente, o texto trata da inexorável passagem do tempo, do envelhecimento. Vamos perdendo o domínio do corpo e não podemos fazer mais o que fazíamos quando jovens. A memória também vai se fragmentando. Essa mulher enterrada é isto: ela vai sendo consumida pela terra, que tem uma conotação de fertilidade para nós, é onde produzimos nosso alimento”, observa Sandra.

As impressões colecionadas dos espectadores na temporada paulista reacenderam, em seu ponto de vista, a importância da visibilidade além da fronteira dos palcos do Rio Grande do Sul.

“Em São Paulo, as pessoas não tinham nenhuma pré-concepção sobre o meu trabalho. O que recebi de retorno do público e dos jornalistas foi legítimo, espontâneo. Ninguém me amava ou odiava de antemão.”

Sandra diz que trabalha mais com a dúvida do que com a certeza, porque a dúvida “empurra para a frente”. Sopesando seus 43 anos de palco desde Quem roubou meu anabela? (1972), de Ivo Bender, com direção de Luiz Paulo, conclui que está “no caminho certo”, fazendo um teatro que seja capaz de transformar o ser humano. Garante que ainda não sabe do próximo projeto, mas quer trabalhar novamente com o marido. Um outro Beckett, como o clássico Esperando Godot, seria uma boa ideia, segundo ela. No mais, a incansável atriz de 67 anos que se tornou um selo de qualidade na cena gaúcha resume o futuro assim:

“Estou disponível.”

Serviço:
Onde: Teatro Renascença (Avenida Erico Verissimo, 307, Porto Aletre, tel. 51 3289-8000)
Quando: Quinta a sábado, às 20h, e domingo, às 18h. De 12/3 a 21/3
Quanto: R$ 30

Ficha técnica:
Autor: Samuel Beckett
Direção e tradução: Rubens Rusche
Com: Sandra Dani e Luiz Paulo Vasconcellos
Produção executiva: Johanna Rusche
Coordenação de produção: Rubens Rusche
Cenografia: Ulisses Cohn
Iluminação: Wagner Freire
Figurinos e visagismo: Leopoldo Pacheco
Aderecista: Viviane Ramos

A atriz gaúcha Sandra Dani, 43 anos de ofícioJean-Charles Mandou

A atriz gaúcha Sandra Dani, 43 anos de ofício

Três personagens marcantes segundo Sandra Dani:

Apareceu a Margarida (1983)
De Roberto Athayde, direção de Luiz Paulo Vasconcellos
“Assim como Winnie, a professora Margarida era várias personagens em uma só. Representava todas as instituições: escola, Igreja, família. Era um universo muito rico e desafiador. Fizemos esta peça nos Estados Unidos e no Brasil.”

Como um sol no fundo do poço (1998)
Texto e direção de Luiz Paulo Vasconcellos
“Dona Leopoldina era uma professora aposentada que não tinha mais recursos para pagar o aluguel e foi morar na rua. Ela coloca um anúncio para as pessoas a visitarem para tomar um café. Era um texto muito jornalístico.”

Medeia (2007)
De Eurípides, direção de Luciano Alabarse
“Toda a trama se dá a partir de Medeia. É uma personagem trágica, cuja emoção não pode ser medida com a de uma personagem comum vivendo hoje. São emoções absolutas. Quando ela odeia, o ódio é maior do que ela.”

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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