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Reportagem

‘Madame Bovary’: tudo pelos desejos absolutos

10.4.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Andre Fachetti

Ema confidencia, rastreando o olhar do espectador: “A conversa de Charles era chata, plana como uma calçada por onde desfilavam todos os lugares comuns” A desambição do marido, um médico, contrasta a pulsação da mulher que detesta sentimentos moderados. “De onde vem essa insuficiência da vida?”, questiona a si mesma.

Os queixumes e diatribes da anti-heroína de Gustav Flaubert (1821-1880) em Madame Bovary extrapolam a convenção literária do diálogo ou do fluxo de consciência e são convertidas à concretude da narrativa em cena segundo a acepção teatral do tradutor, adaptador e codiretor Bruno Lara Resende.

A estratégia dramatúrgica exposta desde 2 de abril no Espaço Sesc, em Copacabana, investe nos poderes discursivos da palavra e da ação física para transmitir ao público os sentidos “de quem está lendo um livro e incorporado ao texto”, no dizer de Lara Resende, de 62 anos.

Para absorver os discursos indiretos que realçam os traços das falas e das personalidades a inspiração vem dos procedimentos do “romance em cena”. Foi assim que o diretor carioca Aderbal Freire-Filho sintetizou a primazia da narrativa em primeiro plano nas bem-sucedidas transposições para o palco dos livros O que diz Molero, do português Dinis Machado (1930-2008), e O púcaro búlgaro, do mineiro Campos de Carvalho (1916-1998), ambos na década passada.

Numa analogia com o cinema, Lara Resende diz que equivale a encarnar a voz off conjuminada à imagem do intérprete na tela. “No teatro, a presença física e a experiência viva do ator se narrando já produzem esse efeito mágico.”

Singularidades de linguagens à parte, não custa lembrar que a sétima arte abraçou a bela e precisa escrita de Flaubert em filmes de Jean Renoir (em 1933), Vincente Minnelli (1949), Claude Chabrol (1991) e Tim Fywell (2000).

Para o idealizador do projeto artístico, Emma é uma personagem pascaliana, em referência ao matemático e filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662). “Ela está permanentemente em busca dos desejos absolutos. Primeiro, recorre às paixões pelos homens. Depois, tenta se agarrar à religião ou ao consumo, em vão”. Lara Resende afirma evitar julgá-la até o seu último ato, permitindo-se espanar o caráter puramente romântico em favor de outras potencialidades dessa criatura “fascinante”.

Os atores Raquel Iantas e Joelson Medeiros expõem o casal Bovary enquanto Alcemar Vieira, Lourival Prudêncio e Vilma Mello conduzem as demais vozes: os respectivos pais, a ex-mulher dele, a empregada, a freira, o padre, o farmacêutico e o escrevente pelos quais ela se apaixona, entre outros.

A intenção é jogar com as ambiguidades. “Propomos uma ligeira diferença em alguns momentos quando não se sabe se tal ator está narrando de fora ou vivendo de dentro.”

Lara Resende leva a história para o fictício vilarejo de Yonville, na primeira metade do século XIX. Apesar de manter essas coordenadas, a encenação compartilhada com Rafaela Amado rejeita subordinar-se à época. Os personagens possuem contornos contemporâneos. “Não fingimos um ambiente francês, nem nos figurinos.” No espaço cênico despojado, apenas duas mesas servem ao enredo em múltiplas conformações.

Filho do escritor Otto Lara Resende (1922-1992), irmão do economista André Lara Resende, o advogado Bruno Lara Resende mantém relação profissional com o teatro há 23 anos. Sua seara sempre foi o texto, traduzindo ou escrevendo, mas agora ousa a direção tomando Madame Bovary pelas mãos.

.:. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, caderno Eu & Fim de Semana, p. 15, em 2/4/2015.

Serviço:
Onde: Espaço Sesc – Mezanino (Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro, tel. 21 2547-0156).
Quando: Quinta a sábado, às 21h; domingo, às 20h. Até 26/4.
Quanto: R$ 5 a R$ 20.

Elenco da peça que adota estratégia do romance em cenaAndre Fachetti

Elenco da peça estruturada como romance em cena

Ficha técnica:
Texto: Gustave Flaubert
Idealização, tradução e adaptação: Bruno Lara Resende
Direção: Bruno Lara Resende e Rafaela Amado
Com: Raquel Iantas, Joelson Medeiros, Alcemar Vieira, Lourival Prudêncio
e Vilma Mello
Cenário: Marcelo Lipiani
Figurinos: Patricia Lambert
Iluminação: Renato Machado
Direção de movimentos: Marcia Rubin
Música: Antonio Saraiva
Direção de produção: Isabel Themudo e Cristiana Lara Resende
Produção executiva: Roberta Brisson

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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