Crítica
É um sopro de ar fresco um espetáculo como Amanhã sou outro, com suas cenas contemporâneas, rápidas, criativas, bem ensaiadas. Bom teatro [como se viu na temporada de estreia em Curitiba e, agora, nas três apresentações no Itaú Cultural, em São Paulo, sempre gratuitas].
O que incomoda é a inclusão de evidentes bandeiras, provavelmente caras ao grupo de artistas, não necessariamente parte da realidade do autor.
A encenação faz parte de um projeto amplo que inclui a gravação da trilha sonora original (Leo Fressato) e de três videoclipes (disponíveis no site do projeto, aqui). O mesmo portal traz toda a obra do autor, que é de domínio público, numa iniciativa fantástica.
A imagem acima faz parte do início da peça e pode sugerir que se trata de uma montagem realista de época, mas não é o caso. Trata-se de uma sequência de esquetes inspiradas no texto desse dramaturgo não apenas mal compreendido, mas esquecido durante um século. A obra de José Joaquim de Campos Leão, nome real de Qorpo Santo, consiste em 17 peças escritas num curto período da década de 1860, mas somente nos anos 1960 é que seus escritos foram resgatados e encenados.
Há momentos no espetáculo visualmente (e sonoramente) impactantes, como a simulação de um exército de cuecas e um desfile de moda grotesco. Outros trechos tornam a experiência divertida, com direito a um game entre escolas e torta na cara.
A dramaturgia e as letras das canções criadas para o projeto ficcionalizam um Qorpo-Santo cuja voz teríamos desejo de ouvir, vinda lá do século 19, dizendo coisas que queremos dizer hoje
É realmente ótimo que ele ganhe homenagens como esta. Só permanece a pulga atrás da orelha em relação aos discursos colocados em sua boca.
Uma das cenas trata de forma lúdica a proposta do autor de uma nova gramática brasileira que obedecesse a sonoridade das palavras (tal como em “qorpo” no lugar de “corpo”).
Já outras extrapolam o escrito do autor para críticas sociais atuais. Considerado um precursor do absurdo no teatro brasileiro, muitas décadas antes de esse estilo ter pisados nos palcos da Europa, Qorpo-Santo cria em A separação de dois esposos dois personagens serviçais que já foram um casal. O que para a época soava como absurdo em qualquer sentido do termo, no espetáculo se torna uma predição do clima polarizado e agressivo que temos hoje entre defensores e detratores da causa gay.
Menções a uma guerra fictícia em Hoje sou um; e amanhã outro unidas ao fato de Qorpo-Santo ter sido contemporâneo à Guerra do Paraguai deram ensejo a críticas (bem-vindas) ao discurso histórico que exalta a vitória brasileira. Por outro lado, essa escolha do texto faz supor que o dramaturgo tivesse sido um pacifista, o que aparentemente não foi.
A dramaturgia e as letras das canções criadas para o projeto ficcionalizam um Qorpo-Santo cuja voz teríamos desejo de ouvir, vinda lá do século 19, dizendo coisas que queremos dizer hoje.
Resta continuar escavando para que possamos conhecer melhor quem foi esse homem e a importância de sua obra. Como escreveu o crítico Yan Michalski, em 1968, na ocasião das primeiras encenações da obra de Qorpo-Santo: sua redescoberta torna “parcialmente obsoletos todos os livros de história da dramaturgia brasileira”.
.:. Publicado originalmente no jornal Gazeta do Povo, Caderno G, em 29/4/2015.
.:. Confira a programação completa do projeto Qorpo Santo – 3 Linguagens em São Paulo, no qual a diretora Nina Rosa e equipe lêem Qorpo-Santo à luz do teatro, da música e do videoclipe, aqui.
.:. Leia reportagem especial em que Fábio Prikladnicki, de Porto Alegre, traça perfil de Qorpo-Santo, aqui.
Serviço da temporada em São Paulo:
Amanhã sou outro (ou a arte de tudo quebrar e nada endireitar)
Onde: Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, tel. 11 2168 1777)
Quando: 27 a 29/5, quarta a sexta-feira, sempre às 20h
Quanto: grátis
Leo Fressato canta Qorpo-Santo
Onde: Itaú Cultural
Quando: 30/5, sábado, às 20h
Quanto: grátis
Ficha técnica:
Texto: Qorpo-Santo
Direção: Nina Rosa Sá
Com: Ciliane Vendruscolo, Débora Vecchi, Rubia Romani, Cleydson Nascimento, Jeff Bastos e Leonardo Fressato Santos
Cenário: Fernando Marés
Figurinos: Paulo Vinícius
Iluminação: Wagner Corrêa
Trilha sonora: Leo Fresato
Arranjos e produção musical: Rodrigo Lemos
Preparação de atores: Babaya
Design gráfico: Pablito Kucarz Do Prado
Assessoria de comunicação: Camilla Martins
Fotografia: Rosano Mauro Jr e Fabiano Rocha
Produção: Michele Menezes
Realização: Projeto Z
Jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná, instituição onde cursa o mestrado em estudos literários, com uma pesquisa sobre A dama do mar de Robert Wilson. Cobre as artes cênicas para a Gazeta do Povo, de Curitiba, há três anos. No mesmo jornal, já atuou nas editorias de economia e internacional.