Reportagem
22.6.2015 | por Mateus Araújo
Foto de capa: Acervo Memórias da Cena Pernambucana
O Auto da Compadecida foi um livro escrito por um jovem de 28 anos, em 1955. Inspirado nos autos medievais e, principalmente, na literatura de cordel, o paraibano Ariano Suassuna escreveu, no Recife, a peça que viria a lançar, no Brasil, um estilo de teatro popular com base no épico. Um marco na dramaturgia moderna nacional, que seria montado no ano seguinte. O livro demorou mais a sair: foi publicado em 1957.
A Compadecida foi encenada pela primeira vez a 11 de setembro de 1956, no Teatro de Santa Isabel, pelo Teatro Adolescente do Recife, sob direção do pernambucano Clênio Wanderley.
Durante os três dias de apresentação, a encenação resultou num retumbante fracasso de público e crítica, chegando a ser suspenso na terceira noite por falta de quem quisesse assistir-lhe. “Na primeira noite tinha metade da plateia; na segunda, metade da metade. Na terceira, decidimos suspender”, lembrava Ariano. Como avaliou o crítico pernambucano Joel Pontes (1926-1977), no livro O teatro moderno em Pernambuco (1966), a maneira com a qual Clênio Wanderley dirigia seus atores, conservando a espontaneidade de cada um deles, não conquistava os recifenses, acostumados com “primarismo” nas interpretações, nas quais “modelo e ator” estariam “demasiadamente próximos”.
Mas uma apresentação fora de Pernambuco daria uma reviravolta na trajetória da peça, aparentemente fadada ao limbo. Selecionada para participar do primeiro Festival de Amadores Nacionais, a montagem pernambucana foi encenada em janeiro de 1957, no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, sendo consagrada com três prêmios (medalhas de ouro): melhor espetáculo, melhor diretor (Clênio Wanderley) e melhor atriz (Ilva Niño).
A peça ainda mexe, com vigor, em nossas referências das relações de poder associadas ao credo – tema que parece não perder o frescor
O grupo recebe o convite para estender a temporada por mais uma semana no Teatro Dulcina, com imenso sucesso de público a cada sessão. No mês seguinte, Paschoal Carlos Magno, um dos principais representantes do teatro nacional, descrevia O auto da Compadecida, no jornal Correio da Manhã, também do Rio de Janeiro: “É uma peça que se interrompe a cada instante com aplausos. É uma peça que se aplaude de pé. Uma peça como poucas do teatro brasileiro de todos os tempos. E quem representa é um punhado de moços de talento, de muitíssimo talento. Há neles dignidade, entusiasmo, honestidade”.
Àquela época, o escritor ganharia destaque na cena carioca justamente pela ousadia de Ariano – um católico, devoto de Nossa senhora, a Compadecida – em criticar a corrupção e os desmandos da Igreja Católica. “Uma peça inteligente e corajosa, além de oportuna. Seu autor, enfrentando preconceitos e preconceitos, deu-nos obra viva e digna de aplausos”, legitimava o crítico de teatro Milton de Moraes.
Desde então, o texto ganhou inúmeras outras montagens. A peça também conquistou plateias internacionais. Em 1959, uma das principais companhias brasileiras, a Companhia de Cacilda Becker fez sua versão para o Auto numa turnê pela Europa. Em mais de 60 anos, a peleja de João Grilo e Chicó transformou-se num clássico do teatro nacional. Seu apelo popular e sua reflexão universal fez da obra de Ariano um dos textos mais montados nos palcos brasileiros – seja por companhia profissionais ou grupo amadores.
Em Pernambuco, a mais conhecida entre as encenações da obra é a da Dramart Produções, que ficou impressionantes 20 anos em cartaz, circulando com a peça por todo o Brasil. O espetáculo era dirigido, originalmente, por Marco Camarotti (1947-2004), e manteve no seu elenco a atriz Socorro Rapôso no papel de Nossa Senhora (personagem que ela encenou também na estreia, em 1956). Hoje, se recuperando de problemas de saúde, Socorro já não atua mais. “Ela é a minha eterna Compadecida”, dizia Ariano.
A paixão de Ariano Suassuna pelo circo é conhecida por muitos. “Sou um palhaço frustrado”, dizia ele inúmeras vezes, em aulas, conversas e entrevistas. Ainda criança, na vida de descobertas em Taperoá (PB), Ariano aprendeu a amar o circo e a arte de fazer graça, magia daquele personagem milenar. Dos tantos que lhe fizeram rir, um foi o mais marcante: Gregório, o pícaro do Circo Stringhini, que um dia esteve naquele sertão paraibano, e anos depois se transformaria, pelo poder da literatura, no narrador do Auto da Compadecida.
De maneira bem humorada, o escritor deu conta de fazer o Brasil pensar o drama do povo nordestino. É nesse universo de dor e submissão que João Grilo, por necessidade de sobrevivência, desenvolveu duas armas particulares: a inteligência e a astúcia. E, se o sol castiga pelo céu, os medos castigam pela terra. É também nesse sertão que surgem, como personagens de caráter maculado, um sacristão, um padre e um bispo, vão se fazer avarentos o padeiro e sua mulher – adúltera – e vai virar monstro um cangaceiro que busca fazer justiça com as próprias mãos, num lugar onde justiça é coisa rara.
A peça ainda mexe, com vigor, em nossas referências das relações de poder associadas ao credo – tema que parece não perder o frescor.
No Auto da Compadecida, Ariano atenta também para questões raciais. Ao escrevê-la, ele criou um Jesus negro, “um protesto contra o preconceito de raça” – revelou, certa vez. No livro, há uma fala que o Cristo, reclamando com João Grilo diz: “Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?”.
“Isso mostra a minha visão totalmente falsa do Brasil, acreditando que estávamos muito à frente dos Estados Unidos. Não é verdade, o preconceito de raça no Brasil é profundamente enraizado, só que disfarçado”, admitiu. Então, ele decidiu procurar o Movimento Negro do Recife, duas décadas depois de escrever a peça. Em seguida, bateu à porta do Movimento Negro, onde conclamou: “Vim pedir perdão e vim me naturalizar negro”. Seis décadas depois, o Brasil ainda vive suas discordâncias raciais. Seis décadas depois, o Auto ainda questiona as discordâncias do Brasil.
.:. Publicado originalmente no Jornal do Commercio, Caderno C, em 16/6/2015.
.:. Leia mais sobre Auto da Compadecida em site especial dedicado à peça, aqui.
Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).