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Reportagem

Copi “transbarroco”

30.6.2015  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: Caíque Cunha

Copi foi insubmisso. Desses que não se regram – literalmente, era sinônimo da desconstrução. Entre suas maquiagens extravagantes, seus vestidos escandalosos e gestual tão intrínseco fez de si a melhor definição da sua própria classificação: o ator-travesti. O autor-travesti, o dramaturgo-travesti, o cartunista-travesti. A travesti tão necessária, em tempos de discussão de gênero, e que, aos poucos, vai saindo do “armário” brasileiro para ser conhecido de maneira merecida por um País onde refletir sobre transexualidade ainda é guerra.

Raul Taborda Damonte (1939-1987), Copi, nasceu na Argentina, mas viveu exilado em Paris, onde morreu em decorrência da Aids. Dono de um teatro barroco, como define a pesquisadora da estética do artista, a pernambucana Renata Pimentel, o autor argentino instiga, com sua obra, a quebra de verdades estabelecidas, mas com um senso de humor e um rigor humano muito grande, no entendimento de Renata.

“Ele coloca luz num problema que é o respeito à diversidade humana – não só com relação à homossexualidade, mas do direito ao corpo, as relações humanas, o amor como ação política, o corpo como território político de marca – inclusive das transgressões”, avalia a pesquisadora.

Mais uma vez, o prefixo trans, que é a ideia de diversos mundos que se intercambiam

Pioneira no Brasil na pesquisa sobre Copi, Renata Pimentel é também responsável pela tradução para o português de três peças do dramaturgo: As quatro gêmeas, Uma visita inoportuna e O homossexual ou A dificuldade de se expressar – esta, atualmente sendo ensaiada pelo Coletivo Angu de Teatro, com assessoria da pesquisadora.

“Copi discute gênero como uma questão cultural. Ele faz isso na prática, com humor tremendo e provocando um riso político muito forte”, avalia Renata. “Ele fez, nas décadas de 1960 a 1980, o que fazem nos anos 2000 e 2010 grande parte de teóricos de gênero, corpo e cultura. Por exemplo: a capacidade de prospectar do corpo.”

A pernambucana, autora do livro Copi – Transgressão e escrita transformista (2011) e atualmente dedicada a um romance biográfico do iconoclasta, define a produção do argentino como um teatro “transbarroco”: “Mais uma vez, o prefixo trans, que é a ideia de diversos mundos que se intercambiam”, assinala. Para Renata, a arte de Copi traz “um universo coletivo e traços que são linhas de fuga”.

“Além disso, ele tinha a capacidade de síntese – desenhava (como cartunista) com tão poucas linhas, mas, ao mesmo tempo, expandia os seus questionamentos do desenho para a escrita: uma obra complementa a outra.”

No seu teatro, Copi traz jogos de imagens, desconstruções de regras e conformidades, máscaras, inúmeras possibilidades de leituras – a transgressão na própria escrita – e a “aparência-verdade”, resumida por Renata, no seu livro, como “o teatro dentro do teatro”.

Em tempos de discussão calorosa sobre o espaço da transexualidade na sociedade brasileira, a obra de Copi é mais uma arma a favor da liberdade de gênero. “Estamos vivendo tempos sombrios. É um momento de um discurso fundamentalista de negação absurda – até à palavra ‘gênero’. (No Brasil) Se quer naturalizar uma construção de gênero”, contextualiza a pesquisadora. “Acho cada vez mais fundamental esse lugar da arte de questionar, sobretudo o teatro. É a força política da arte.”

Raul Taborda Damonte (1939-87), CopiUlf Andersen

Raul Taborda Damonte (1939-87), Copi

Aos poucos, o teatro de Copi vai sendo montado no País. No Rio de Janeiro, no Sesc Copacabana, acontece, até 5 de julho, a Ocupação Copi, com duas peças, um debate e uma oficina sobre o universo teatral do argentino.

Na ocupação, o Teatro de Extremos apresenta a peça O homossexual ou A dificuldade de se expressar, até então inédita no Brasil. Já o encenador Thomas Quillardet e o ator Márcio Vito encenam o monólogo A geladeira, visto em 2007, em Curitiba, Salvador e no Rio de Janeiro.

“Copi é um nome ainda obscuro, e está na genialidade, como Beckett. Além disso, ele tem muito a ver com o momento político que estamos vivendo, quando o conservadorismo bota suas garras de fora, e um discurso de liberdade como o de Copi precisa ter um lugar privilegiado”, diz o diretor e ator Fabiano de Freitas, do Teatro de Extremos.

Durante a programação, também é oferecida uma oficina sobre a ideia de “ator-travesti” defendida por Copi. “É uma desconstrução desse ator que ele se autointitula. É um pensamento mais amplo, um ator sempre pronto para mudança de pele. Ele dominava muito os jogos teatrais, que colocavam o ator nesse nível de mutação. O ator-travesti rompe com a visão binária de homem que se veste de mulher e mulher que veste de homem. É o tirar dessa carapaça que a sociedade impõe, afirmando um jogo livre. Copi é repleto de liberdade”, pontua Freitas.

.:. Publicado originalmente no Jornal do Commercio, Caderno C, em 24/6/2015.

.:. Leia mais sobre a literatura de Copi na análise do jornalista Diogo Guedes, aqui.

Márcio Vito em 'A geladeira', do RioCaíque Cunha

Márcio Vito em ‘A geladeira’, do Rio

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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