Crítica
27.6.2015 | por Fábio Prikladnicki
Foto de capa: Claudio Etges
Ninguém negará que presenciamos, a todo momento, um verdadeiro excesso de discursos sobre o amor. Mas do que estamos falando quando falamos de amor?, questionaria Raymond Carver. Talvez por causa dessa fugacidade, a Macarenando Dance Concept, do coreógrafo Diego Mac, tenha preferido dançar ao invés de palestrar. No espetáculo 100 formas para o amor, que foi apresentado nesta quarta-feira (24/6) no Theatro São Pedro, em Porto Alegre (e volta a cartaz em outubro, no Teatro Renascença), o verbo fica a cargo das letras das canções populares do repertório nacional e internacional que sucedem na trilha sonora, como se fosse uma grande festa.
É um itinerário de 30 faixas bastante familiares ao público que começa com o clássico Willkommen, do musical Cabaret, e termina com Let’s do it, de Cole Porter, passando por várias décadas e nacionalidades. Estão lá um samba de Martinho da Vila (Disritmia), uma música do cancioneiro romântico (Evidências) e uma da Legião Urbana (Eduardo e Mônica), entre outras.
Essa poética da playlist se alinha ao procedimento proposto por Jérôme Bel no espetáculo The show must go on (2001, remontado outras vezes), em que o artista convida bailarinos profissionais e amadores para dançarem grandes clássicos do pop (um vídeo da produção foi exibido no final de 2012, em Porto Alegre, no projeto Videoarte nos Jardins do DMAE). No mês passado, a companhia Movasse (MG) apresentou, no 10º Festival Palco Giratório Sesc/POA, um trabalho apropriadamente intitulado Playlist, que consiste em um improviso dos bailarinos sobre uma trilha de canções populares.
Há uma evidente teatralidade que aproxima o público da cena, como se qualquer um pudesse dançar o que eles dançam
As muitas formas de amor do espetáculo assinado por Diego Mac, estreado no segundo semestre de 2014, são materializadas pelos oito bailarinos em coreografias que passam longe do estereótipo da dança contemporânea. São gestos figurativos que desenham lugares-comuns das relações amorosas, como beijos, abraços, desentendimentos e — não façam isso em casa — tapas. Há uma evidente teatralidade que aproxima o público da cena, como se qualquer um pudesse dançar o que eles dançam. Claro que não é assim, mas essa falsa impressão de simplicidade dá graça ao espetáculo. Se você identificou movimentos de Macarena aqui e ali, não é mera coincidência: basta reler o nome da companhia.
Integram o elenco Aline Karpinski, Dani Dutra, Denis Gosch, Eduardo Richa, Fernando Faleiro, Joana Amaral, Juliana Rutkowski e Renata Teixeira. Todos se amam livremente no palco como se não houvesse a bancada conservadora do Congresso Nacional. Esse amor sem barreiras é um grito por um mundo melhor, pois o privado se tornou político há muito tempo, mas quem dera viver em uma época na qual as relações pessoais não precisassem se reafirmar a todo momento para reivindicar o direito de existir. De alguma forma, o espetáculo mostra que ninguém tem autoridade para legislar sobre o amor dos outros.
Os figurinos criados por Fabrízio Rodrigues nos transportam para algum lugar do passado, evocando, a meu ver, camponeses do século 18, o que contrasta com a atualidade das canções e, ao mesmo tempo, confere certo ar mundano ao tema. Sempre em tons pastéis, a iluminação de Fabrício Simões fica praticamente estanque, em configurações diferentes a cada canção. Mas o passeio dos bailarinos entre as áreas claras e escuras dá uma impressão de dinamismo. Transitando por essas zonas graduais, que às vezes são altamente contrastadas e às vezes são mais fluidas, criam camadas de expressividade. Tanto os figurinos quanto a iluminação foram laureados em suas categorias no Prêmio Açorianos de Dança de 2014.
Se o balé clássico era o entretenimento preferido da nobreza, a Macarenando Dance Concept cria aqui uma dança popular para gente como a gente: que ama, perde, sofre e, na maioria das vezes, volta a amar.
.:. Publicado originalmente no site do jornal Zero Hora em 26/6/2015.
https://www.youtube.com/watch?v=0yuHnobov1o
Ficha técnica:
Direção e coreografia: Diego Mac
Dramaturgia e Assistência de Direção: Gui Malgarizi
Direção de elenco: Denis Gosch
Vídeo e trilha-sonora: Diego Mac e Gui Malgarizi
Bailarinos: Aline Karpinski, Dani Dutra, Denis Gosch, Eduardo Richa, Joana Amaral, Juliana Rutkowski, Nilton Graffree e Renata Teixeira
Iluminação: Fabrício Simões
Figurinos: Fabrízio Rodrigues
Produção: Sandra Santos
Assessoria de comunicação: Bruna Paulin – Assessoria de Flor em Flor
Fotos: Claudio Etges e Cintia Bracht
Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.