Crítica
23.7.2015 | por Gabriela Mellão
Foto de capa: Christophe Raynaud de Lage
Em Avignon
O personagem-título da obra Shakespeariana Ricardo III, grande destaque do Festival de Avignon este ano [a 69ª edição na cidade do sul da França termina no sábado, 25], encenado pelo alemão Thomas Ostermeier, desfila sobre o palco seus defeitos como atributos. Trata-se de um homem de feitos amorais, capaz de qualquer barbaridade para chegar ao poder, que é ainda coxo, corcunda e feio. Deformado, portanto, física e psicologicamente.
Interpretado por Lars Eidinger, ator fetiche do célebre Teatro Schaubühne, liderado por Ostermeier em Berlim, Ricardo surge em cena como um demônio sedutor. Conquista o coração do público falando muitas vezes diretamente a ele, algumas delas em tom de confissão. É o caso da abertura da peça, durante uma festa no palácio do Rei Edward – em um palco revestido de terra, que dá a dimensão arcaica da trajetória do protagonista.
Após uma entrada festiva dos atores, regada a champagne, bazucas de confete e batidas de uma bateria nervosa, tocada ao vivo, Ricardo fica só no palco e apresenta-se intimamente para a plateia. Segurando um microfone suspenso do teto, que ao longo do espetáculo também serve de câmera e refletor, ele se dirige ao público e humaniza sua alma negra.
Explica que só lhe resta a maldade neste mundo. “Privado que sou da harmoniosa proporção, erro de formação, obra da natureza enganadora (…) não tenho outro deleite para passar o tempo a não ser espiar minha sombra ao sol e cantar minha própria deformidade. Já que não posso ser amante para me divertir neste belo mundo, resolvi ser vilão.”
A personalidade autêntica e sincera de Ricardo III, acentuada pelo poder fora do comum de Eidinger em comunicar-se com a plateia, estabelece uma cumplicidade instantânea entre o vilão e o público. São quase três horas em que o espectador acompanha traições, mentiras, assassinatos entre outros atos violentos de Ricardo, comovido com sua mente inteligente, franca e sarcástica.
Se Shakespeare exagera suas características físicas, Ostermeier as deixa ainda mais evidentes, nesta que é sua quinta montagem a partir da obra do bardo
Sua fala cativante chega aos ouvidos do espectador sem a musicalidade e o lirismo de Shakespeare, de forma mais direta e atual.
O diretor encomendou uma tradução que transforma em prosa os versos do bardo e corta cerca de quarenta por cento da peça, centrando no personagem principal e nos acontecimentos mais importantes da obra.
Ricardo, Duque de Gloucester que de fato governou a Inglaterra de 1483 a 1485, não sente remorso algum ao eliminar seus adversários, tramando complôs, traindo familiares e casando-se por interesse com o objetivo de chegar ao trono. Se Shakespeare exagera suas características físicas, Ostermeier as deixa ainda mais evidentes, nesta que é sua quinta montagem a partir da obra do bardo – depois de Hamlet, Otelo, Sonho de uma noite de verão e Medida por medida.
O diretor do Schaubühne deseja conquistar a identificação do público, mas não facilita a cumplicidade. Empenha-se em evidenciar as más-formações do protagonista. Opta por uma coroa negra de ponta-cabeça, que remete a uma correia de cavalo; uma espécie de ombreira preta amarrada no ombro de Lars faz as vezes de corcunda. Também coloca em um dos pés do protagonista um sapato negro pesado, desproporcional e esfarrapado. E no rosto, uma máscara disforme feita com cobertura de bolo, que gera um aspecto ainda mais retalhado a Eidinger.
A encenação calcada na constante quebra da ilusão teatral faz de Ostermeier herdeiro direto de Brecht. Ricardo, seu bufão trágico, diverte mas é sobretudo um convite ao publico refletir sobre suas próprias deformidades. E compartilhar uma arte que apesar de não ser revolucionária, é da mais alta qualidade.
Ficha técnica:
Texto: William Shakespeare
Encenação: Thomas Ostermeier
Tradução: Marius von Mayenburg
Dramaturgia: Florian Borchmeyer
Com: Thomas Bading Edward, Robert Beyer, Lars Eidinger, Christoph Gawenda, Moritz Gottwald, Jenny König, Laurenz Laufenberg, Eva Meckbach, Sebastian Schwarz e Thomas Witte (baterista)Cenografia: Jan Pappelbaum
Música: Nils Ostendorf
Desenho de luz: Erich Schneider
Vídeo: Sébastien Dupouey
Figurinos: Florence von Gerkan e Ralf Tristan Scezsny
Marionetes: Susanne Claus e Dorothee Metz
Coreografia do combate: René Lay
Legendagem: Uli Menke
Produção: Schaubühne
Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.