Entrevista
“As lembranças se gravam na minha memória com traços cujo encanto e força aumentam dia a dia; como se, sentindo que a vida me escapa, eu procurasse aquecê-la pelos seus começos”
Rousseau (Confissões) [1].
Lançando sua sexta publicação dedicada à história da cena teatral pernambucana, Panorama do teatro para crianças em Pernambuco (2000-2010), o jornalista e ator Leidson Ferraz, nascido em Petrolina e morador de Recife desde 1998, tornou-se um personagem importante na pesquisa, registro, análise e disseminação da memória do teatro feito no estado.
Sua primeira incursão – Memórias da cena pernambucana – se mostrou uma pesquisa de fôlego e resultou em quatro volumes dedicados à história de artistas e grupos, muitos extintos, que ajudaram a construir parte significativa do teatro nesse chão do Nordeste brasileiro.
Com as energias renovadas, já inicia a próxima aventura nos labirintos do tempo. A nova pesquisa tem como objetivo traçar um painel do teatro de Recife nas décadas de 1930 e 1940. Na entrevista a seguir, elaborada por email, o jornalista discorre sobre as conquistas e desafios de quem faz da memória de uma arte efêmera uma materialidade que nos permite conhecer e refletir sobre o teatro de ontem, de hoje e de amanhã.
Teatrojornal – De onde vem esse desejo ou essa preocupação com o registro, com a documentação e a disponibilização de informações sobre o teatro feito no estado?
Leidson Ferraz – Na realidade, este é o meu sexto projeto já concluído sobre a memória teatral pernambucana. Inicialmente, foram os quatro volumes da coleção de livros Memórias da cena pernambucana [publicados entre 2005 e 2009] e, logo depois, o projeto de pesquisa Teatro para crianças no Recife: 60 anos de história no século XX, que resultou num DVD de dados compartilhado com algumas instituições pelo Brasil e também disponível no site do CBTIJ – Centro Brasileiro de Teatro Para a Infância e Juventude. O livro Panorama do teatro para crianças em Pernambuco (2000-2010) é, então, o sexto produto que concluo graças ao Funcultura (Fundo de Cultura do Estado de Pernambuco), mas já estou em andamento com outros cinco projetos (a pesquisa Um teatro quase esquecido: Painel das décadas de 1930 e 1940 no Recife – quase concluída; um acervo online de programas de espetáculos intitulado Teatro tem programa!; a publicação em livro da primeira parte da pesquisa Teatro para crianças no Recife: 60 anos de história no século XX; um acervo de fotos em preto e branco de espetáculos do Recife e Olinda no século XX; e uma pesquisa sobre o teatro dos anos 1950 na capital pernambucana).
O grande desafio, acredito, é encontrar fontes de informação. Por minha formação como jornalista, tenho um foco especial pelo que a impressa pôde registrar ao longo dos anos, mas não só aquela mais oficial
Bom, respondendo a sua pergunta, antes de ser jornalista, eu já era ator, mas foi fazendo assessoria de comunicação para o projeto Memórias da cena pernambucana, que surgiu em 1998 como uma série de debates propostos pela Feteape (Federação de Teatro de Pernambuco), sobre grupos teatrais quase todos extintos, que me apaixonei pela pesquisa histórica. Entrevistando artistas já fora da cena, tendo acesso aos seus acervos tão maltratados e percebendo a pouca quantidade de registros que tínhamos em livro, foi que me lancei a preencher um pouco desta lacuna. Desde então, acho que Pernambuco tem sido muito feliz nestes registros, pois o número de pesquisas e publicações cresceu bastante desde os anos 2000. Por ser o teatro uma arte tão efêmera, e com histórias tão incríveis, principalmente em termos de superação de dificuldades, acredito que o passado precisa ser sempre revisitado.
Você acumula o olhar do jornalista e também do homem de teatro. Como essas duas dimensões influenciam o seu olhar, o ponto de vista que lança para as reflexões propostas? Acha que o traço mais forte é do Jornalista ou do artista? Como esses percursos na história de outros artistas se desdobram no Leidson ator?
Acho que o meu faro jornalístico é sempre maior. Eu, na verdade, adoro vasculhar aquilo que é mais difícil de encontrar, aquilo que pouca gente abordou ou que já está quase esquecido. E minha escrita é muito resultado do Leidson jornalista. Confesso até que tenho dificuldade para uma desenvoltura mais acadêmica (estou cursando duas cadeiras de mestrado em história na UFPE, como ouvinte, para tentativa de inserção ainda este ano).
Como sempre escrevi aproximando bastante o leitor de mim, acho que meus produtos de pesquisa têm a minha cara, de alguém que escreve com mais coloquialidade e intimidade até. Minha porção artista se reflete no amor que tenho ao teatro, no respeito que traduzo no próprio olhar que dou aos meus trabalhos, de extrema entrega e democracia, abarcando a todos (este é um problema que enfrento, pois sempre teimo em voltar minha atenção a universos muito amplos, inclusive, àqueles que estão à margem). Quanto ao Leidson ator, acho que já cumpri o meu papel e não tenho mais nem tempo nem interesse para estar nos palcos. Encerrei minha vivência como intérprete em 2013, com a peça Olivier e Lili: Uma história de amor em 900 frases [com o grupo Teatro de Fronteira, direção de Rodrigo Dourado]. Pretendo continuar a fazer teatro apenas com a minha escrita, inclusive lançando questionamentos e impressões via Facebook, algo que tenho gostado cada vez mais, ou nas matérias eventuais para revistas da área cultural. Além das assessorias de comunicação e projetos de pesquisa, claro.
Esse tipo de trabalho que flerta com uma dimensão historiográfica certamente impõe desafios e surpresas ou descobertas ao pesquisador. Você tem alguns procedimentos/metodologias que acabou desenvolvendo para dar conta dessa tarefa? Poderia compartilhar também qual é o maior desafio nesse tipo de trabalho e uma de suas descobertas ou surpresas mais significativas?
Talvez o meu processo seja bem caótico, porque, como já disse, tenho mania de abarcar o mundo inteiro (risos). O grande desafio, acredito, é encontrar fontes de informação. Por minha formação como jornalista, tenho um foco especial pelo que a impressa pôde registrar ao longo dos anos, mas não só aquela mais oficial, pois teimo em observar jornais e revistas que circularam pouco ou não deram atenção àqueles segmentos mais marginalizados, como grupos de subúrbios ou do interior, ou ainda linguagens artísticas desfavorecidas de espaço na grande mídia. Procuro, também, ler de um tudo e conversar com uma gama ampla de pessoas, pois sempre acabo descobrindo um acervo ou informação a mais.
Portanto, o desafio é ter tempo e faro para achar o que se procura e o que vem como surpresa. Modéstia à parte, sinto que meu olhar já é treinado para isso, pois várias vezes me surpreendo como consigo descobrir, por exemplo, uma produção teatral da qual eu tinha uma pista mínima. Isso é coisa dos artistas que já se foram e ficam do meu lado me orientando (risos)! Só pode ser! E agradeço por isso. No mais, para cada tema abordando, há sempre surpresas… E confesso que fico sempre impressionado por ver Pernambuco mantendo uma atividade bem intensa no teatro, mesmo em momentos de profunda crise.
Como tem sido a viabilização dessas iniciativas e como você pensa a distribuição desses materiais? Já teve algum retorno de desdobramentos dessas publicações?
Todos os meus projetos contaram com incentivo do Funcultura, edital lançado anualmente pelo Governo do Estado de Pernambuco. E sempre concorro de igual para igual com todos os outros proponentes, pois conseguir aprovação ainda é uma luta, pior do que vestibular em universidade pública, viu! Uma grande preocupação minha foi como compartilhar os meus produtos, e tenho orgulho em dizer que sempre reservei uma cota para distribuição gratuita a pesquisadores em todo o país, universidades de teatro, instituições voltadas à memória e sedes de grupos de teatro.
A minha atuação como artista me fez conhecer muita gente Brasil afora, e a parceria a que venho tendo com o Sesc ou com a Secretaria de Cultura da Prefeitura de Olinda para distribuição das obras me possibilita, por exemplo, dizer que é possível encontrar a coleção Memórias da cena pernambucana por quase todo este país. Já tive retorno disso do Piauí a Manaus e Santa Catarina. Inclusive, outros pesquisadores têm me procurando cada vez mais para obter informações do teatro em Pernambuco. Isso me enche de orgulho e lembro: compartilho tudo o que tenho. A memória é nossa!
Embora o seu enfoque no Panorama do teatro para crianças em Pernambuco (2000-2010) esteja mais voltado para o registro contextualizado dessa produção, arriscaria identificar traços mais recorrentes nessa produção?
A produção do teatro para crianças, e acredito que em todo o Brasil, é dividida entre aqueles que só pensam em lucrar e aqueles que têm algo realmente a dizer para as crianças de todas as idades. Em Pernambuco, uma terra de intensa produção desta linguagem há muitas décadas, temos exemplos gritantes de obras medíocres e maravilhosas. Não há meio termo: ou se percebe que aquela companhia ou grupo pesquisa, propõe algo com criatividade, imaginação e ousadia, ou segue a linha da repetição das mesmas fórmulas que a TV e o cinema vêm fazendo, sem qualquer preocupação estética ou de conteúdo. Mas continuamos fortes, pelo menos em termos de quantidade. E sempre iremos encontrar bons e maus espetáculos, como em qualquer outra parte. Isso é uma marca do tempo, ainda que enfrentemos períodos de maior ou menor inventividade e mergulho.
Em todo o país podemos encontrar distintas vozes a refletirem sobre o teatro que tem as crianças como público principal. Todavia, muitas também são as críticas a essas produções. Depois dessa intensa pesquisa, você teria algumas críticas ou pontos que acha importante serem considerados quando se pensa o teatro para esse público específico?
Quando não se respeita o público alvo em termos de inteligência e sensibilidade, fica difícil produzir algo significativo. Independente de ser adulto ou criança, acredito que é preciso atentar primeiramente para aquelas duas questões.
No Memórias da cena pernambucana, uma produção de fôlego em quatro volumes, você faz uma viagem no tempo para pensar o desenvolvimento do teatro em Pernambuco. Como esse olhar no “retrovisor” impacta o olhar para “frente”, para o teatro que se faz hoje no estado? Como avalia os últimos três anos dessa produção?
Eu costumo dizer que se aprende muito com o passado. E ele também nos dá força para seguir em frente. Lembro que, certa vez, numa cidade do interior de Pernambuco, uma moça veio falar comigo para dizer que após ler o capítulo sobre o grupo Teatro Hermilo Borba Filho, liderado pelo saudoso Marcus Siqueira nos anos 1970, ela percebeu que os problemas que o grupo dela estava vivendo naquele momento ou eram muito parecidos ou mais simples do que o do grupo olindense, que sobreviveu ao período da ditadura [1964-1985]. Isso a fez ter mais força para seguir em frente. Claro que me emocionei com esse depoimento e acho que a coleção Memórias da cena pernambucana tem esse papel também. Afinal, aprendemos com os erros e as vitórias dos que vieram antes de nós, e, muitas vezes, o que consideramos uma grande novidade já foi experimentada antes. Isso nos faz ter o pé no chão, acredito. E mais: ter orgulho dessa luta que vem há séculos, porque o teatro não morrerá nunca; ele se reinventa o tempo todo. Pode até decair em muitos momentos, mas se ergue e apresenta sempre novidades, nem que seja o novo retrabalhado.
Quanto à nossa produção nos últimos três anos, estamos vivendo em tempos difíceis pela crise financeira em todo o país, mas, curiosamente, Pernambuco tem sido fortalecido no quesito grupos e na ocupação de espaços alternativos diante da carência dos nossos teatros oficiais, tão decaídos. Residências (num movimento chamado “Teatro em Casa”) e palcos diminutos têm sido as opções viáveis neste momento, cada vez mais crescente.
A pesquisadora Ecléa Bosi, reconhecida figura nos estudos que envolvem a memória, certa vez comentou numa aula que “quando evocamos algo do passado estamos aprendendo novamente e que aquele que nos dá um depoimento nos ensina a reabrir o tempo.” Quais são os aprendizados que ficam pra você depois dessas empreitadas de “reabrir o tempo”?
O maior aprendizado talvez tenha sido o de compreender bem mais o teatro que se faz hoje – talvez me tornando uma pessoa até mais compreensiva diante das dificuldades do agora, de certo modo – e, acima de tudo, agradecido por toda a garra da imensa quantidade de artistas e técnicos que vieram antes de nós, teimosos que só eles. Acho que entendo melhor essa nossa trajetória e as perdas e ganhos que tivemos ao longo do tempo.
Todo recorte ou toda escolha configura também posicionamentos políticos. Olhar para a história do teatro de Pernambuco e escolher quem entra ou que importância ganha nessas páginas certamente revela muito do Leidson. O que te guia nessas escolhas sobre aquilo e quem entra para a “boca de cena dessa história” contada por você? Reflexões dessa natureza te assolam nesse processo de pesquisa e escrita?
Eu sempre fui plural, dialogando com artistas das mais diversas tendências. Certa vez, numa discussão com alguns artistas, um colega meu me jogou na cara que eu teimava em ser “amiguinho de todos”. Juro que nunca quis ser unanimidade – Deus me livre! – mas, de fato, sempre consegui transitar pelos mais diversificados núcleos do teatro em Pernambuco, isto no estado inteiro. Ser jornalista e, principalmente, assessor de comunicação de muitos festivais no estado, me possibilitou isso, acredito.
Então, meu olhar como pesquisador sempre tentou abarcar o máximo de coletivos, das mais diversas propostas, e acredito que tenho uma queda por dar visibilidade aos que geralmente não são foco de atenção. Minhas pesquisas sobre o teatro para crianças são uma prova disso, assim como a atenção a grupos de cidades pequenas como Camaragibe e Limoeiro, por exemplo, presentes na coleção Memórias da cena pernambucana. Talvez por eu vir do interior (nasci em Petrolina), sempre quis dar vazão a esta minha parcela daquele que veio de longe, que já estava à margem da produção cultural do “centro”. Tanto que sonho ainda em focar mais minhas pesquisas nos municípios de menor visibilidade em Pernambuco (um dia farei isto!). Bom, como sou bem alto, meu abraço é grande, felizmente! Cabem todos junto a mim.
Como os interessados podem ter acesso às suas publicações?
A coleção Memórias da cena pernambucana está esgotada, mas pode ser consultada nas bibliotecas do Sesc, Brasil afora. Já o livro Panorama do teatro para crianças em Pernambucana (2000-2010) está à venda na Livraria Cultura (com possibilidade de pedido via Internet) e na sede do Sated/PE e da Feteape (ambas no Recife). Para acessar a pesquisa Teatro para crianças no Recife: 60 anos de história no século XX, basta conferir o site do CBTIJ: Já as minhas outras pesquisas, posso compartilhar com quem tiver interesse. Meu contato: leidson.ferraz@gmail.com
E viva a memória teatral, pernambucana e brasileira!
[1] BOSI, , Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.76.
Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.