Crítica
A arte propõe enigmas que excitam a percepção crítica, vide o sujeito que sai do teatro tocado pela experiência do espetáculo. Um chamado à consciência ativa do espectador, como pensava e agia o escritor alemão Bertolt Brecht, cujos 60 anos de morte se completam em 2016.
Um dos textos mais decantados do autor, em termos cronológico, temático e formal, A vida de Galileu foi talhado em três versões, de 1938 a 1956, encenadas na Dinamarca, nos EUA e na própria Alemanha. Ele não viveu para ver a estreia que dirigira junto ao seu núcleo, o Berliner Ensemble.
Uma nova montagem em São Paulo desponta em boa hora para clarear os sentidos do contraditório em tempos de culto à intolerância. E, melhor, prezando a genialidade do homem e do artista com o magnetismo da concepção popular sofisticada.
Sob a ótica da diretora Cibele Forjaz, Galileu Galilei, como rebatizada, consegue abrasileirar a multidão que acompanhou em Roma, no século XVII, os conflitos entre os avanços do conhecimento e o obscurantismo religioso. Em 1633, o tribunal da Santa Inquisição impôs ao matemático, físico e astrônomo recuar da comprovação de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, como na interpretação geocêntrica da Bíblia.
A peça em cartaz no Tuca valoriza a paisagem coral de mulheres e homens que vão ao espaço público protestar ou festejar em bloco. As instâncias da fé, da dúvida, da ética e da verdade incidem sobre o cidadão comum confrontado a todo tipo de fundamentalismo.
Nove atores e um músico dão corpo aos diálogos e apartes. A movimentação intensa, o maracatu, o carnaval ou panelaço (menção direta à realidade em nada redutiva) não sacrificam os silêncios filosóficos da obra.
O equilíbrio sob caos aparente lembra o caráter tropicalista de José Celso Martinez Corrêa, diretor influente na formação de Cibele Forjaz, do Galileu Galilei do Teatro Oficina, em 1968, quando a censura sequer permitia ao ator narrar olhando o espectador nos olhos, fundamento dialético brechtiano vital. No Tuca, a interação alcança os corredores da plateia.
O instinto da aplicação prática que rege o cérebro e o estômago do personagem é absorvido pelo sistema criativo da equipe teatral
A cenografia de Márcio Medina espicha a frente do palco por meio de uma arena avançada em direção ao público. O formato circular comunica também os fluxos biográficos e históricos que perpassam cidades como Veneza, Florença e, claro, a capital italiana onde fica o enclave murado do Vaticano, que só três séculos depois reabilitou Galileu daquele processo, em 1992.
O instinto da aplicação prática que rege o cérebro e o estômago do personagem é absorvido pelo sistema criativo da equipe teatral. O elenco faz as vezes de contrarregra, transparecendo as variações da narrativa desde o interior da própria cena aberta.
As atuações revezam instantes líricos e viscerais. Resultam das afinidades geracionais e estilísticas de intérpretes como Ary França, Jackie Obrigon, Luís Mármora e Rodrigo Pandolfo, entre outros. Asseguram 140 minutos de uma apresentação cadenciada, espirituosa, bem-humorada e profundamente oportuna na instigação das ideias.
Denise Fraga mostra o papel mais elaborado da carreira. Comediante madura, ela empresta jovialidade às ruminações e desatinos do velho e sedutor Galileu, que inclusive diagnostica paradoxos da comunidade científica em projetos como a construção da bomba atômica. Trata-se, portanto, de um astrônomo digno de artimanhas “macunaímicas”, terrenas, despido de máscaras heroicas ou anti-heroicas.
Soa ainda sintomática a temporada no Tuca no ano de seu cinquentenário. O braço cênico da PUC-SP foi um dos marcos da resistência cultural durante a ditadura militar. No início deste ano, o Conselho Superior da Fundação São Paulo, mantenedora da instituição, recusou a implantação de uma cátedra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Representantes da arquidiocese e da reitoria compõem o conselho. O pensamento crítico segue enfrentando o dogma.
.:. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, seção Eu & Cultura, p. D4, em 22/6/2015.
Serviço:
Onde: Tuca (Rua Monte Alegre, 1.024, Perdizes, tel. 11 3670-8455).
Quando: Sexta e sábado, às 21h; dom., às 19h. Até 30/8.
Quanto: R$ 50 (sexta) e R$ 70.
Ficha técnica
Direção artística: Cibele Forjaz
Adaptação/dramaturgia: Christine Röhrig, Cibele Forjaz, Maristela Chelala e Denise Fraga
Com: Denise Fraga, Ary França, Rodrigo Pandolfo, Lúcia Romano, Maristela Chelala, Vanderlei Bernardino, Jackie Obrigon, Luís Mármora, Silvio Restiffe e Théo Werneck
Cenografia: Márcio Medina
Trilha sonora: Lincoln Antônio e Théo Werneck
Iluminador: Wagner Antonio
Figurinista: Marina Reis
Visagista: Simone Batata
Preparação corporal e coreografia: Lu Favoretto
Preparação vocal: Andrea Drigo
Assistente de direção: Artur Abe e Ivan Andrade
Fotos: João Caldas
Programação visual: Philippe Marks
Vídeos: Chico Gomes, Paulo Mosca, Bossa Nova Films
Produção executiva: Lili Almeida
Direção de produção: José Maria
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Realização: NIA Teatro. Projeto foi realizado através da Lei Federal de Incentivo à Cultura
Apoio: PUC – Teatro Tuca – 50 anos
Transportadora Oficial: Avianca
Patrocínio exclusivo: Bradesco
Realização: Ministério da Cultura e Governo Federal do Brasil – Pátria Educadora
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.