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Reportagem

A palavra grávida de imagens em Bergman

19.8.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Lenise Pinheiro

Em Itajaí

Mestre do ofício, o velho homem de teatro conversa com a bela e jovem protagonista da peça a estrear dali a semanas. Entre o cair da tarde e o anoitecer, eles se vêem ocupando o vazio e silencioso cenário da ficção. A intimidade abre sendas para um diálogo franco.

O fetiche de Lobo Mau que graça na superfície do encontro não demora a sucumbir às profundezas do inconsciente onde tudo pode e se reinventa onírico. Ou não, a narrativa deixa a bruma no ar.

Quando escreveu e filmou Depois do ensaio, respectivamente em 1980 e 1984, Ingmar Bergman (1918-2007) o definiu como “obra de televisão dramática que trata da vida no teatro”. A produção brasileira em cartaz em São Paulo, no Teatro Eva Herz, mostra como o sueco de fato assinou uma declaração de amor às artes cênicas, base da genialidade de seu cinema. Não importa se presencial ou audiovisual, a natureza humana solta os anjos, as sombras e os fantasmas nessa história.

O espetáculo idealizado e dirigido por Mônica Guimarães cumpriu temporada no Rio em 2014 e tem circulado por capitais, mas o ator Leopoldo Pacheco diz que ainda se vê fazendo descobertas cada vez que pisa a cena. Ele vive Henrik Vogler, o encenador obsessivo na construção poética da obra e na condução dos atores, deveras apaixonado pelas mulheres com as quais trabalha, portanto enésimo alter ego do cineasta.

“O Bergman expõe claramente como vê a direção. Ele é ascético ao encarar o ensaio da peça feito um centro cirúrgico”, afirma Pacheco. Com a experiência de 30 anos de teatro, dividindo a última década com escalações para telenovelas da Rede Globo, o ator delicia-se com o desnudar de camadas. Ele nunca tinha interpretado autores escandinavos como o próprio Strindberg ou o norueguês Henrik Ibsen, de Casa de bonecas.

A palavra é o teatro, e ela serve ao ator, ao público. Venceu a calma, o mais simples

Vogler está às voltas com o ensaio de O sonho, de Johan August Strindberg (1849-1912), um renovador da linguagem dramática, conterrâneo a quem Bergman leu pela primeira vez quando tinha 12 anos e o devotou por toda a vida, embora ateu. Encenou 30 vezes o autor de Senhorita Júlia, sendo quatro delas versões de O sonho, peça que celebra a lógica daquilo que foge do reconhecível, como na descida de Agnes à Terra, filha do deus Indra interessada em saber como vivem os seres humanos.

Em um final de tarde, exausto após trabalhar com o elenco, o perfeccionista Vogler oscila o cochilo e a vigília, posicionado numa cadeira no tablado, quando nota a entrada de Anna (interpretada por Sophia Reis). Ela rastreia sutilmente o cenário atrás de uma pulseira que teria esquecido. A partir daí, entabulam a conversa casual que evolui para outras revelações. Da insegurança da arte de representar aos desamores, o tom confessional dá margem para a entrada de uma terceira personagem, Raquel (por Malu Bierrenbach), a mãe de Anna e amante do diretor no passado, quando protagonizou o mesmo papel.

Desde que assistiu ao filme na Mostra Internacional de Cinema, em 1985, a diretora Mônica Guimarães também construiu forte elo com Depois do ensaio. Na ocasião, chegou a empreender leituras ao lado da atriz Myriam Muniz (1931-2004), de quem foi assistente em alguns espetáculos. Myriam seria Raquel e ela, Anna, mas a falta de dinheiro para os direitos autorais adiou o projeto. Ela só o retirou da gaveta a partir de 2008, quando conheceu em São Paulo representantes da Ingmar Bergman Foundation, de Estocolmo, durante uma edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, do qual é produtora executiva desde 2004, após vasta experiência teatral como atriz e professora.

Ao imbricar teatro e cinema com ecos bergmanianos – áreas que também ressignificaram sua trajetória profissional –, Mônica valeu-se da tradução direta do sueco pelo fundador do É Tudo Verdade e colunista do Valor, Amir Labaki, e pelo jornalista Humberto Saccomandi, editor de Internacional do Valor. A diretora se confessa vitoriosa ao conter a tentação de encorpar a dramaturgia com imagens dos filmes do cineasta. Ela testou projeções, mas rendeu-se à palavra. “As ideias da encenação foram caindo por água, aos poucos. A palavra é o teatro, e ela serve ao ator, ao público. Venceu a calma, o mais simples”, afirma a diretora sobre a concepção do avesso aliada às sombras assumidas na luz de Wagner Freire e à rusticidade tropical das cordas de sisal trançadas na sugestiva coxia da cenografia de Marco Lima.

.:. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, caderno Eu & Cultura, p. D4, em 10/8/2015.

Serviço:
Onde: Teatro Eva Herz – Livraria Cultura (Avenida Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Cerqueira César, São Paulo, tel. 11 3170-4059)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 27/9.
Quanto: R$ 60

Ficha técnica:
Texto: Ingmar Bergman
Tradução: Amir Labaki e Humberto Saccomandi
Direção: Mônica Guimarães
Elenco: Leopoldo Pacheco, Malu Bierrenbach e Sophia Reis
Música Original: Marcelo Pelegrini
Cenário: Marco Lima
Iluminação: Wagner Freire
Figurinos: Carol Badra
Assistente de Direção e Produção: Pitxo Falconi
Produtores Associados: Amir Labaki e Mônica Guimarães
Chancela: Bergman Foundation
Realização: Oi

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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