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Crítica

Salmo 91 ou todos são iguais perante a dor

10.8.2015  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: Wilson Lima

O Carandiru da peça Salmo 91 pode facilmente ser substituído por qualquer outra penitenciária brasileira, uma vez que as mazelas dali são universais e atemporais. Rever as dores das centenas de pessoas que viveram naquele presídio, cenário de uma das maiores barbáries da história do Brasil, é também reforçar a necessidade de questionamentos tão atuais sobre a prisão no País e, mais que isso, lançar um clarão reflexivo para os ensejos e desequilíbrios que habitam sob a crosta daqueles condenados.

A montagem da Cênicas Cia. de Repertório, com direção de Antônio Rodrigues, está em cartaz na sede do grupo, no Bairro do Recife, para cumprir temporada até 6 de setembro. O olhar da encenação parte de um retrato emocional dos presos da maior cadeia do País, cenário de uma chacina em outubro de 1992, na qual 111 homens foram assassinados.

O roteiro do dramaturgo Dib Carneiro Neto toma como base o livro Estação Carandiru, do médico Dráuzio Varella. Através dos depoimentos pessoais de dez personagens é traçado um recorte documental sobre os homens de histórias particulares, mas igualados pela condição de clausura e marginalidade frente à sociedade.

A condição de vida que nivela aqueles homens presos transformou-se num signo bem utilizado pelo diretor do espetáculo

Dispostos em um palco central, circundados da plateia, os cinco atores do elenco se revezam entre os curtos monólogos. A narrativa começa com os tormentos de um dos poucos sobreviventes, um homem assustado pelo prenúncio de sua mãe que dias antes lhe sugeriu a leitura do salmo bíblico título da peça. Como no texto sagrado, aquele homem, entre os tantos mortos, consegue sobreviver. Em seguida, as histórias tocam em relatos que atravessam questões como sexualidade, a família desestruturada, os sonhos vazios e os conformismos de quem aprendeu – ou tenta aprender – a sobreviver num universo paralelo, cujas regras e leis são próprias.

Enquanto a dramaturgia sinaliza uma potência crítica e forte na abordagem de algo tão ácido, a concepção da cena, no entanto, não caminha à altura do texto. É inquestionável a dedicação e entrega do elenco formado por Álcio Lins, Gustavo Patriota, Raul Elvis, Rogério Wanderley e Antônio Rodrigues, porém os registros das personagens recorrem em grande parte ao caricato, deixando oscilante a interpretação e prejudicando na verdade o que está sendo dito. Na voz e no gesto, os atores evidenciam vícios de entonação e dicção e um corpo excessivamente inconstante. O Chaveiro (Álcio Lins), por exemplo, recorre a um tom de humor semelhante àquele de programas televisivos, em nada harmônico com a encenação. Por outro lado, a travesti à Rita Cadilac (vivida por Antônio) é forte na felicidade de reconhecer-se respeitada na prisão – algo desconhecido por ela fora daquele lugar.

Sobre os símbolos religiosos são lançados olhares sarcástico que apontam para caminhos ambíguos e delicados. Na cena da conversão evangélica de um dos presos, a carga nas tintas das insinuações deixam dúbia a “salvação” da alma do homem. Em outro momento, a referência à travesti crucificada na Parada Gay de São Paulo lança luz sobre a recente polêmica nacional.

A condição de vida que nivela aqueles homens presos transformou-se num signo bem utilizado pelo diretor do espetáculo. Antônio codifica esse “em comum” através de uma mancha de sangue que surge como pontuação no depoimento de cada personagem. É o sangue como mácula social e mental. Ali está uma das mais potentes marcações da montagem. Outro símbolo reiteradamente usado pela direção são as máscaras dos carrascos. Cobertos os rostos, o objeto iguala os torturadores, o pastor que convoca à salvação e o batalhão de choque – os donos das grandes “máscaras-escudo”, disparadores dos tantos tiros daquela chacina.

Cena de ‘Salmo 91’, encenação de Antônio Rodrigues

O cenário, que se constrói diante da própria plateia, ajuda a contextualizar a precariedade em que vivam aqueles presidiários. Simples e eficiente, os objetos e marcas potencializam a narrativa de forma imagética: vão das pichações bíblicas nas paredes das celas, tão presentes nesses ambientes, aos vasos sanitários de estruturas desumanas.

O intuito de questionar o sistema prisional, no tangente às suas falhas sociais, sinaliza o engajamento da montagem para com as reflexões sobre a ressocialização de pessoas julgadas e condenadas por crimes. É uma peça de desponta justamente em meio à bipolarização de opiniões sobre a diminuição da maioridade penal no Brasil, por exemplo. Sem muito esforço, é fácil fazer a associação deste espetáculo a outro recentemente encenado no Recife, o Sistema 25, dirigido por José Manoel Sobrinho, com 25 atores em cena, pontuando exatamente as angústias e o sofrimento de homens aprisionados numa cadeia insalubre.

.:. Publicado originalmente no blog Terceiro Ato, do Jornal do Commercio, em 3/8/2015.

Serviço:
Onde: Espaço Cênicas (Rua Marques de Olinda, 199, 2º andar, Bairro do Recife, entrada pela Rua Vigário Tenório)
Quando: sábado, às 20h; domingo, às 18h. Até 6/9
Quanto: R$ 20

Ficha técnica:
Texto: Dib Carneiro Neto
Encenação: Antônio Rodrigues
Com: Álcio Lins, Gustavo Patriota, Raul Elvis, Rogério Wanderley e Antônio Rodrigues; ator coringa Tarcísio Vieira
Preparação de elenco e assistência de direção: Sonia Carvalho
Figurinos: Alcio Lins, Antônio Rodrigues e Sônia Carvalho
Adereços: Alcio Lins, Felipe Lopes, Sônia Carvalho e o Grupo
Máscaras: Grupo
Cenário: Antônio Rodrigues
Execução de cenografia: Felipe Lopes
Execução de figurino: Francis Souza
Maquiagem: Alcio Lins
Sonoplastia: Antônio Rodrigues
Operação de som: Tarcísio Vieira
Fonoaudióloga: Sandra Carmo
Iluminação: Luciana Raposo
Operação de luz: Nardonio Almeida
Design gráfico: Antônio Rodrigues
Contra regra: Monique Nascimento
Produção executiva: Sônia Carvalho e Antônio Rodrigues
Realização: Cênicas Cia. de Repertório

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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