Resenha
23.9.2015 | por Dirce Waltrick do Amarante
Foto de capa: Daniel Prata
Embora alguns romances do escritor, poeta, ensaísta e dramaturgo austríaco Peter Handke já tenham sido publicados no Brasil, sobretudo em décadas passadas, ele ainda é pouco conhecido por aqui.
A editora Perspectiva publica agora uma antologia bilíngue de peças do escritor, ainda inéditas em livro no país, organizadas e traduzidas por Samir Signeu. Em Peter Handke: peças faladas, o leitor encontrará quatro peças de meados dos anos 1960 (Predição, Insulto ao público, Autoacusação e Gritos de socorro), as quais, quando encenadas pela primeira vez, causaram muito alvoroço, por abandonarem completamente o ilusionismo e os “embustes simbólicos” que, na opinião do dramaturgo, impediam que a verdadeira realidade do palco se revelasse. Lê-se na sua peça Predição: “No teatro as coisas vos acontecerão como no teatro” e “o palco terá a monotonia do palco”.
Em Insulto ao público e Autoacusação, em razão do repúdio ao ilusionismo, a luz que incide sobre a plateia e o palco permanece a mesma durante o espetáculo. É como se o espectador tivesse que ter consciência de que, ali, espaço e tempo são compartilhados. Não se permite ao espectador a ilusão de que no palco o mundo apresentado será diferente do seu. Além disso, em ambas as peças, o palco está vazio.
O dramaturgo admitiu que o método de suas primeiras peças era o de limitar as ações teatrais às palavras cujos significados muitas vezes contraditórios impedem uma ação e uma história individual
O método teatral de Handke, nesse momento, consistia em retirar do teatro qualquer outra possibilidade de jogo que não fosse o jogo em si. Por isso, seus atores não têm um papel: “para dizer a verdade, não há papéis”, como se lê em Autoacusação, não há nomes e também não há o compromisso de contar uma história, há, contudo, o compromisso de lembrar aos espectadores que eles estão diante de um jogo. Não por acaso, Handke é incluído na lista de dramaturgos do chamado teatro pós-dramático.
Insulto ao público começa com o alerta: “Vocês não verão nenhum espetáculo. Suas curiosidades não serão satisfeitas. Vocês não verão nenhuma peça. Não haverá nenhuma representação. Vocês verão um espetáculo sem cenas”.
Nos anos 1960, Handke via o teatro como um “remanescente de um tempo passado”. Ele não se considerava herdeiro nem de Brecht nem de Beckett, dois dramaturgos experimentais já consagrados à época, de quem Handke chegou a ser contemporâneo. A propósito de Brecht, o autor de Predição dizia que, apesar de sua vontade revolucionária, ele permanecia prisioneiro dos cânones do jogo teatral e principalmente da fábula.
O teatro de Handke não consiste em dar “imagem” para a realidade, nem espelhar essa mesma realidade, nem mesmo jogar com as palavras e as frases dessa realidade. O dramaturgo admitiu que o método de suas primeiras peças era o de limitar as ações teatrais às palavras cujos significados muitas vezes contraditórios impedem uma ação e uma história individual. Assim se lê em Insulto ao público: “Vocês esperavam uma bela história. Vocês não esperavam nem mesmo uma bela história. Vocês esperavam uma certa atmosfera. Vocês esperavam um mundo diferente. Vocês não esperavam nenhum mundo diferente”.
Peter Handke propõe um teatro feito apenas de palavras, a ponto de ele chamar seus atores de “oradores” (ele raramente usa o termo ator): “Nós apenas falamos. Nós expressamos. Nós não nos expressamos, exceto a opinião do autor. Nós nos expressamos através da fala. Nossas falas são nossas ações. Através da fala nós nos tornamos teatrais. Nós somos teatrais, porque estamos falando num teatro” (Insulto ao público).
Apesar disso, é curioso mencionar que, em 1969, Handke escreveu uma peça sem palavras, Das Mündel will Vormund sein (O menor quer ser tutor), a qual consiste em dez cenas, nas quais dois performers executam várias ações comuns, como comer uma maçã e ler o jornal, e outras nem tão comuns.
Voltando às peças de fato faladas, Autoacusação é uma confissão, na qual a palavra “eu” pode-se referir a qualquer um, de modo que não se trata da autoacusação apenas do autor, mas de uma autoacusação de qualquer um do palco e da plateia: “Eu fui ao teatro. Eu escutei esta peça. Eu falei esta peça. Eu escrevi esta peça”.
Segundo Handke, ele teria planejado essa peça como uma história, a qual se desenvolveria em forma de diálogo confessional. Mas, à medida que escrevia, a peça ia se reduzindo a palavras que não significavam nada no palco: “Eu aprendi. Eu aprendi as palavras. Eu aprendi os verbos. Eu aprendi a diferença entre ser e ter sido. Eu aprendi os substantivos”.
A última peça apresentada no livro é, na minha opinião, a mais radical: Gritos de socorro é um jogo cujas regras complexas não parecem permitir que o espectador se “divirta” com ele. Suas frases são uma série de colagens de jornais, revistas, notas, bulas etc. Um verdadeiro ready-made verbal. Essa peça, um experimento extremamente ousado, marcaria, como afirmam os estudiosos, a transição para a sua maior peça falada, Kaspar, ainda não publicada em livro em português.
.:. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C3, em 29/8/2015.
.:. Leia reportagem de Beth Néspoli sobre o livro Peter Handke: peças faladas.
Serviço:
Peter Handke: peças faladas
Editora Perspectiva, coleção textos, nº 32, 240 páginas, R$ 50.
Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.