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Crítica

Deslocar é preciso: a aridez em Esteve Soler

1.9.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Humberto Araujo

Em Brasília

O encontro do Teatro do Instante com a dramaturgia de Esteve Soler é uma pororoca de deslocamentos. Há uma experiência radical mediando o autor catalão e a cena brasileira que ainda não o conhecia, despontado na Europa, sete anos atrás. O trabalho em progresso (o termo é curioso, se saberá depois) trazido a público no 16º Cena Contemporânea tem a ver com outra perna ibérica: intercâmbio do coletivo brasiliense com os colegas portugueses do Teatro O Bando. Mas os deslocamentos mais auspiciosos para o espectador tornado íntimo dessa tríplice aliança são aqueles de ordem estética.

Procedimentos de produção e de criação geram uma intervenção polinizadora sobre e a partir do texto Contra o progresso (2008), objeto da empreitada dos atores-pesquisadores ligados ao grupo de investigação cênica institucional da Universidade de Brasília, o Poéticas do Corpo. Os caminhos da equipe atritam, à altura, os conteúdos e formulações da escrita árida e penetrante de Soler.

En contra #experimento1 preenche expectativas de um projeto consciente do modo de lidar com os estranhamentos do texto e aqueles a que o próprio coletivo permite se lançar em cena sem enxergar fronteiras na arte. Sete histórias curtas encetam graus de insensibilidade sobre a vida nos planos interpessoais e segundo a lógica do capitalismo nos seus diferentes estágios, sendo o atual dos mais cruéis por causa da sofisticação subcutânea do descarte.

As leituras/escutas desses textos curtos são amplificadas por dispositivos de trânsito, instalação e performance

Diálogos e situações pinçam o burlesco e o nonsense em retratos de existências anestesiadas, de valores frouxos e regidas por desvios outros, absurdos. Ao articular o que há de extraordinário nos contextos mais comezinhos do cotidiano o autor assume riscos hiperbólicos cuidando em não perder o prumo reflexivo por trás das primeiras impressões.

A escolha de um espaço não convencional em vez do edifício teatral faz com que a ambientação real concebida pelo Teatro do Instante toque os efeitos de realidade que a dramaturgia abarca. As leituras/escutas desses textos curtos são amplificadas por dispositivos de trânsito, instalação e performance. Cerca de 40 espectadores tragados pelo fluxo intermitente desde que aceitam embarcar em ônibus rumo a destino desconhecido. Cumprem trajeto de uns 50 minutos para, enfim, pisar a narrativa também ela feita de trajetos na encenação de Diego Borges inteligentemente entranhada à dramaturgia.

Cena de abertura do experimento do Teatro do InstanteHumberto Araujo

Cena de abertura do experimento do Teatro do Instante

Ao desembarcar na rua de terra envolta pela umidade da área verde, o que diminui sensivelmente a temperatura se comparada à origem da viagem na região central da cidade, caímos na cena de um atropelamento. Postados atrás de uma fita zebrada avistamos um corpo estendido, agonizante. Uma mulher se aproxima. Em vez de chamar uma ambulância, como balbucia a vítima, prefere afrontá-la com ironias. Uma segunda pessoa se achega e tampouco sentirá a dor do outro.

Surge um carro vermelho, e do interior dele um casal e uma canção dos Beatles. Eles como que roçam o cadáver da história anterior, mas ignoram. Tão interiormente ermos como o local, falam do fim do contrato de 14 meses de relacionamento que pactuaram, a expirar dali a minutos. Acompanhamos fragmentos desse pragmatismo amoroso, sempre ao ar livre.

Da terceira história em diante o público é subdividido para percorrer in loco os cômodos ou nichos aonde se desenrolam as demais tramas. Certo dia, um casal é surpreendido por uma maçã gigante, quase encostada no teto e nas paredes da sala de estar. Aparvalhado diante do aparelho de TV que os incomoda por mostrar o mundo lá fora, outro casal tenta, em vão, desligar o aparelho.

Num ambiente sugerido como restaurante, com direito a traços naturalistas (cozinha-se, serve-se vinho), dois homens conversam sobre religião, empilhando louros de um sobre o outro para ver quem é mais servo/empreendedor de Deus na hora de abrir uma igreja.

Passagem em que crença, negócio e comida se imbricamHumberto Araujo

Passagem em que crença, negócio e comida se imbricam

Dois enredos possuem tons fabulares, subvertendo o gênero (uma versão de Chapeuzinho Vermelho) ou atualizando-o (no discurso de focas sobre a extinção da espécie, por extensão a do bicho homem e sua milenar arrogância para com o planeta).

Nessa teia que pode dar ideia de discrepância, se assim alinhada, os criadores valorizam os discursos e disposições dos personagens. Investem no peso das palavras corrosivas de Soler. Bem como a elas aderem imagens derivadas com síntese pelo desempenho dos atuadores e pelo pensamento dos espaços cênicos itinerantes pela casa térrea de vasto quintal.

Espaços em que os desenhos de cenografia, sonoridade e luz são vitais, como na cabana sensorial em torno de Chapeuzinho Vermelho, em inspirado solo de Alice Stefânia. Mesmo assim as funções não estão declaradas na ficha técnica do festival, talvez porque colaborativas na veia conforme a interface Instante/O Bando.

Paisagens internas e exteriores são subtextos potentesHumberto Araujo

Paisagens internas e exteriores são subtextos potentes

Entre os achados, En contra #experimento1 deixa com que a “big apple” que estorva o casal seja vista pelo imaginário do espectador, evitando representá-la ou ilustrá-la (há mais mistério nesse vácuo esmagador da vida a dois do que a vã consciência). Em sentido oposto, elege um menino, um ser de carne e osso para expor a miséria televisiva e o horror da mentalidade de quem, desde o seu mundinho, só vê saída por meio da exclusão; uma gente que já morreu em vida e não sabe.

Assim que chega ao local da apresentação – o trajeto do ônibus é feito com os vidros encobertos, prólogo subaproveitado – as árvores e as casas fazem presumir, enfim, que a peça cohabita provisoriamente um dos condomínios residenciais daquela região. Curioso, portanto, que os desterros estéticos e temáticos se deem nesses lugares fixos, digamos assim, regulados pela administração e segurança (por isso a produção anotara o número do documento de cada um do público).

O experimento alcança momentos de intensa teatralidade nas diferentes escalas: closes, perspectivas e panorâmicas. Na maior parte do tempo a condição voyeur torna-se intimista. Não há como o observador ficar indiferente à barbárie desferida em nome do afeto e das crenças, como não bastasse a fúria bélica da mercantilização da vida a todo custo.

Não se sabe que fim levará a pesquisa em curso, mas a abordagem e a vibração que esses artistas demonstram no convívio com a primeira parte da trilogia de Esteve Soler (composta ainda por Contra la democracia e Contra el amor) sinalizam bons ventos para contrapor-se às assepsias disseminadas – um código recorrente em toda a jornada de quase cinco horas, somando ida e vinda, foram as botas brancas de PVC usadas ou descalçadas nos atos, aqui e ali, remetendo à higienização, à inspeção, ao funcionário que descarna no açougue, e por aí vai. Para lembrar George Orwell: se queres ter ideia do futuro imagine uma bota branca de PVC esmagando um rosto humano para sempre, como aquelas possivelmente usadas no caminhão frigorífico abandonado na Áustria com 71 corpos de refugiados. De que progresso a humanidade está falando?

.:. Escrito no âmbito do 16º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, de 18 a 30/8, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.

Diferentes registros perpassam os sete textos do autor catalãoHumberto Araujo

Diferentes registros perpassam os sete textos do autor catalão

Ficha técnica:
Dramaturgia: Esteve Soler
Direção: Diego Borges
Assistente de Direção: Mônica Mello
Com: Alice Stefânia, Diego Borges, Fernando Santana, Gui Brasil, Marcelo Pelúcio, Rachel Mendes e Rita de Almeida Castro
Colaboração Artística: Antenor Ferreira, Gisele Rodrigues Guilherme Noronha, João Brites, Pedro Benevides, Rui M. Silva, Sara Castro e Yasmin Daltrozo
Assistente de Produção: Thays Elinne
Parcerias: Teatro O Bando, Cia. D´Artes do Brasil e Universidade de Brasília
Realização: Poéticas do Corpo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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