Crítica
A grande perversão que se encena em ‘Big Brother Brasil’ não é sexual. É a perversão da concorrência sem leis, espelho do estágio do capitalismo decadente em que vive o país
(Maria Rita Kehl em entrevista sobre o seu livro Videologias, Revista Trópico)
Em São José dos Campos
Viver e acompanhar a produção teatral em uma cidade como São Paulo é algo que nos coloca sempre diante de um volume extraordinário de chamados, no melhor estilo da máquina capitalista mais voraz, em que a oferta é quase sempre inalcançável, a ponto de em muito diluir ou deixar pouco visíveis experiências artísticas importantes, ‘engolidas’ pela boca dentada dos dias. Ao menos para alguns, como para este crítico, que não havia visto até aqui, por exemplo, Máquina de dar certo, provocativo experimento cênico estreado na capital em 2012 e agora reapresentado no Festivale de São José dos Campos.
O nome da companhia é já indicativo da sua vocação, ao menos pelo que se pode ver neste trabalho: Cia. Bruta de Arte. “De arte”. Não só, estritamente, “de teatro”, ainda que sem dúvida seja esta a arte que está na base do grupo. Faz sentido. O espetáculo é um híbrido que desloca a ideia de “peça teatral” marcadamente na direção da dança, das artes visuais e das beiradas da performance. Um teatro-coreografia (mais que uma dança-teatro, no sentido tradicional), uma dramaturgia do corpo, um happening disciplinado, a forma foge produtivamente às tentativas de definição.
A estrutura dramatúrgica tem um desenho bastante simples, ainda que as variações sejam muitas: um grupo de indivíduos está confinado em determinado espaço sob o acompanhamento de um animal (um coelho) e vive uma maratona de ações extenuantes sob o comando de uma voz exterior que lhes dita o comportamento. As tarefas a serem executadas têm como deixa a trilha sonora que a cada intervenção faz os participantes se articularem em novas performances e enfrentamentos.
era preciso fazer teatro vivo de matéria morta (ou de matéria feita para matar). ‘Máquina de dar certo’ é então o laboratório artístico que olha para o laboratório social em que os ratinhos em teste somos nós mesmos
Tendo este mote como contexto o espetáculo é basicamente uma coreografia. Ou uma sequência de ações dançadas. Os quadros lembram de imediato a dança-teatro de Pina Bausch, seu ‘pós-expressionismo’, seu gosto pelo fragmento e pela revelação de estados pessoais dos intérpretes. A situação de clausura e o arremate com o vazio de sentido também pode remeter a Entre quatro paredes, de Sartre, com a diferença de que aqui toda a dialógica aparece subsumida nos movimentos físicos. Entretanto ainda que estas sejam filiações possíveis certamente o que mais nos aproxima atualmente do espetáculo é a forma do reality show televisivo. E a sua problemática.
Em uma totalização livre entre corpo, violência e exibicionismo, é o tema da espetacularização da vida o que rege os fragmentos da montagem. E no contexto da indústria cultural não há nenhum objeto que nos remeta mais próximo a essa conjugação que o reality. Há, pois, um Big brother no coração desta Máquina de dar certo. Daí que olhando o quadro geral do espetáculo podemos dizer que ele desvela a seu modo aquilo que a psicanalista Maria Rita Kehl identificava como a substituição do voyeurismo enquanto caminho para o gozo (fórmula mais próxima das telenovelas, articuladas em chave de ficção), pela rede de intrigas que se monta e é estimulada por este grande irmão (no espetáculo representado por aquela voz impessoal, em off).
O fundamental no reality é que já não estamos diante da vida representada, mas de histórias de concorrência no âmbito da vida não representada, da vida “verdadeira” – fato que quer ser traduzido também como um valor. Este verdadeiro, nos diz a Rede Globo, representa “mais” a vida ela mesma que os mecanismos usuais da ficção. É uma experiência nova a ser vivida. Pois, a inversão mais interessante feita na montagem é esta: colocar o maneirismo realista à prova de um forte exercício de estilização, criando na forma artística um contradispositivo, uma moldura para que o objeto se torne de novo visível. E com ele o seu fundamento: o sucesso como ponto de chegada. Visto como conquista financeira, material, na TV, e levado ao osso do “não significa nada” na montagem. Daí a idiotia que nos assalta em espelho. Na ampliação é como se tudo aquilo que nas corridas concorrenciais a que somos submetidos no dia a dia, com a promessa de certa superioridade moral, fosse reduzido a um buraco sem saída e sem sentido.
O dado de pensamento que o trabalho da companhia captura é a discussão sobre esta moral própria, mediada pelo aniquilamento imaginário do outro e favorecedora de uma fantasia em torno da sociabilidade na qual não existe acordo coletivo “a priori”. É a selva. A lei é a do vale-tudo, que só encontra disciplina nessa voz externa, regente, que entretanto não está interessada em pacto ético de nenhuma espécie, sua única função é manter a máquina em movimento permanente. Uma finalidade que não olha para os lados, é um algo em si.
O que o espetáculo na sua fala quase muda nos diz, pois, é que vivemos de uma impressão francamente falseada sobre o que é este “em si”, sobre o que se convencionou como sendo o movimento da vida. Porque no fundo não é movimento, senão aparência. O que existe de fato é a recorrência perversa a uma mesma imagem-base, a da concorrência entre indivíduos que se engalfinham, por vezes em estratégias sutis, buscando uma mesma coisa – o “dar certo”, ao tempo em que eles (nós) mesmos se transformam em coisas. Uma finalidade cega, justificada pela ideologia, que se completa em recompensas pontuais dentro do percurso da máquina ou naquele lugar mais alto que a mercadoria pode alcançar: o da “vitória”, coroação do fetiche não só em termos materiais (dinheiro, por exemplo) como simbólicos.
Apesar desta relação deliberada feita aqui com o universo dos reality, o dado crítico mais relevante, que o espetáculo oferece como uma fissura na ordem, é o fato de que essa voz que nos rege externamente é impessoal. Demarca-se assim a ideia de que não se trata de uma reclamação quanto a algo prontamente localizado. Trata-se de algo mais essencial: os modos de funcionamento de um sistema inteiro e, por que não dizer, de uma época. Por isso pessoalizar a voz seria reduzir o sentido a uma demanda em torno da qual se protesta. A montagem, na sua abertura, cava mais fundo e tenta localizar as questões além da demanda da hora. A ótima trilha sonora, com seus deslocamentos entre gêneros musicais e épocas diferentes, talvez esteja também intuindo este arco amplo que o sentido, se quisermos, pode alcançar.
Ao se dedicar a construir uma forma que mimetize criticamente estes percursos narcísicos da servidão (in)voluntária dos nossos dias a Cia. Bruta, sob encenação sensível e corajosa de Roberto Audio, se lança em uma aventura artística interessantíssima: a de criar representação para aquilo que nos aliena justamente anulando a potência criativa do sujeito. Salvo engano, a tarefa que se colocou o grupo foi esta de levantar um espetáculo que pudesse traduzir esse fechamento da vida (porque trata-se disso, da chapação do imaginário, do seu enclausuramento em torno de uma ideia única) sem que, no entanto, o efeito teatral se rendesse ao objeto, se tornasse refém dele. Ou, falando em termos mais simples, era preciso fazer teatro vivo de matéria morta (ou de matéria feita para matar). Máquina de dar certo é então o laboratório artístico que olha para o laboratório social em que os ratinhos em teste somos nós mesmos.
Além do interesse que o espetáculo desperta agora, pontualmente, é grande também a expectativa em relação aos passos futuros do grupo. E o desejo de que, na contraface destas figuras inventadas por eles, consigam colocar em perspectiva seu projeto poético e continuem dando inteireza a ele já a partir da vocação aqui apontada: a de reunião de diferentes artes. Quem sabe também com a agregação de colaboradores dessas outras áreas – da dança, das visuais, da música, da dramaturgia? A troca e assimilação e afinação de saberes com outros criadores, junto com os atuais que fazem o núcleo duro da companhia, seria uma aposta linda para o momento de pleno florescimento em que se encontram.
.:. Escrito no âmbito da 30ª edição do Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, o Festivale, em São José dos Campos (SP). O jornalista, crítico, curador e pesquisador do teatro viajou a convite da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR).
.:. Leia crítica de Valmir Santos a ‘Máquina de dar certo’.
Ficha técnica:
Direção: Roberto Audio
Com: Ana Lúcia Felippe, Angela Ribeiro, Dagoberto Macedo, Luis Gustavo Luvizotto, Marba Goicochea, Maria Campanelli Haas, Paulo Maeda, Ricardo Socalschi, Taiguara Chagas, Teka Romualdo, Thammy Alonso, Wanderley Salgado e Washington Calegari
Assistente de direção: Paulo Maeda
Iluminação: Paulo Maeda e Mário Spatizianni
Direção de movimento: Fabiano Benigno
Trilha sonora: Cia. Bruta de Arte
Pesquisa de efeitos e edição de trilha : Thammy Alonso e Diego Rodda
Música original: Helder da Rocha Figurinos : Angela Ribeiro e Melissa Campagnolli
Fotos: Giorgio D’Onofrio e Carlos Vianna
Projeto gráfico: Angela Ribeiro
Produção: Cia. Bruta de Arte
Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.