Menu

Reportagem

Versão e contraversão em ‘Caesar’

15.9.2015  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Leekyung Kim

No ano passado, assistindo aos debates políticos, o diretor Roberto Alvim teve a ideia de montar Júlio César, texto de William Shakespeare. O resultado pode ser visto no Porto Alegre em Cena, em Caesar – Como construir um império, de 8 a 10/9 [e no Centro Cultural São Paulo a partir de 18/9, sexta-feira].

Escrita em 1599, a obra de William Shakespeare aborda o funcionamento, significado, ambiguidades e sutilezas que envolvem o jogo político. “Nos debates eleitorais, o mesmo fato era desenhado de maneira muito diferente dependendo dos interesses em jogo”, lembra o diretor do Club Noir de São Paulo. O texto conversa diretamente com este cenário, uma vez que o assassinato de Júlio César é narrado por Marco Antônio e Brutus de maneiras completamente diferentes.

Brutus profere um discurso no qual justifica o homicídio dizendo que César se tornaria um tirano, e é aclamado pelo povo. Em seguida, Marco Antônio convence a todos de que César jamais se tornaria um déspota e que Brutus e os outros são os verdadeiros traidores. Isso faz com que a população ataque Brutus e seu grupo.

“A política se apresenta como uma produção e uma manipulação dos afetos de um povo. Ela voltou, nos últimos anos, a se tornar um assunto muito palpitante e central da nossa sociedade. Essa peça me pareceu uma oportunidade de mergulhar dentro da vertigem do processo histórico e do poder”, conta Alvim.

A exemplo de seus outros espetáculos, Alvim sintetizou o texto, deixando somente aquilo que considerava essencial. Todo o império romano é apresentado por dois atores, Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia, que transitam por mais de 20 personagens. O espetáculo é encenado sobre um palco coberto com cerca de 30 mil moedas e uma linha de luz neon vermelha. “Com cenário minimalista, a ideia é mostrar que o império se ergue sobre o dinheiro e o sangue, a vida e a morte”, comenta o diretor.

Com cenário minimalista, a ideia é mostrar que o império se ergue sobre o dinheiro e o sangue, a vida e a morte

Caesar é um pouco diferente dos demais feitos por Alvim, no sentido de utilizar potencialmente a trilha sonora em diálogo com o som humano. Trata-se de uma espécie de ópera minimalista, para duas vozes, e piano. “Procurei descobrir como a voz humana iria reagir e ter outras possibilidades de exploração junto com pré-determinações musicais, rítmicas, como o piano sugere o tempo inteiro”, explica, lembrando que a trilha foi composta por um dos maiores filósofos brasileiros em atividade, Vladimir Safatle.

As características estéticas do diretor permanecem. A obra, segundo ele, se conecta 100% com o que é feito no Club Noir. “Procuramos nas coisas uma espécie de síntese que dispare uma amplidão, e tentar com o mínimo de elementos povoar o espaço da cena e do imaginário”, destaca.

Essa é a primeira vez que Alvim monta Shakespeare. “Sempre costumei lidar com grandes dramaturgos da história, que têm uma singularidade, uma visão de mundo muito especifica, que ampliam a experiência humana em direções novas. São criadores de planetas estéticos específicos”, relata o diretor, que se prepara para estrear dois espetáculos em São Paulo até o fim do ano: Fantasmas, de Henrik Ibsen, e O balcão, de Jean Genet.

O que mais chama a atenção de Alvim na obra de Shakespeare é o campo de vetores contraditórios: ele afirma e nega ao mesmo tempo, o que pode ser facilmente reconhecido neste texto. Marco Antônio apresenta Júlio César como um grande líder, um homem justo, e, na sequência, ele se nomeia o novo imperador romano, dizendo que Cesar tinha grandes virtudes, mas também fraquezas e que o seu exemplo o guiará para caminhos opostos ao que César trilhou. “O tempo inteiro você trabalha na contradição, o que é profundamente humano”, destaca o diretor.

Conforme Alvim, sobretudo dentro do campo político, fala-se algo hoje e se nega amanhã. “Isso não é uma questão de caráter, é uma questão do processo histórico, ele vai pedindo um posicionamento instante a instante”, comenta Alvim.

“É um rio vertiginoso, todos estamos perdidos e vamos tentando tomar decisões instante a instante que muitas vezes são equivocadas e, se não tomarmos as decisões, nos afogamos nesse campo de contradições que não é moralista, é existencial”, resume o diretor, que é conhecido do público gaúcho por trabalhos como o proejto das tragédias Peep classic Ésquilo e Tríptico Samuel Beckett, ambos apresentados em edições anteriores do Porto Alegre Em Cena.

.:. Publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 1, em 8/9/2015.

Serviço:
Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1.000, Metrô Vergueiro, tel. 11 3397-4002)
Quando: sexta-feira e sábado, às 21h; dom., às 20h. Até 25/10
Quanto: R$ 20 e R$ 3 (somente no dia 2/10)

Ficha técnica:
Texto: William Shakespeare
Direção e adaptação: Roberto Alvim
Com: Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia
Pianista: Vladimir Safatle
Assistente de direção: Juliana Galdino
Composição e trilha Sonora original: Vladimir Safatle
Cenografia e iluminação: Roberto Alvim
Figurinos: João Pimenta
Projeto gráfico: Felipe Uchôa
Fotos e vídeos: Laerte Késsimos e Leekyung Kim
Direção técnica e operação: Vinícius Tardelli
Cenotecnia: Diego Dac e Saulo Santos
Visagismo: Alex (Salão Pierà)
Produção: Gelatina Cultural
Direção de produção: Ricardo Grasson e Cícero de Andrade
Assistentes de produção: Vivian Vineyard, Felipe Costa e Ivy Sousa
Realização: Club Noir

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

Relacionados

‘De mãos dadas com minha irmã’, direção de Aysha Nascimento e direção artística e dramaturgia de Lucelia Sergio [em cena, Lucelia Sergio ao lado de dançarinas Jazu Weda e Brenda Regio]