Crítica
16.10.2015 | por Fábio Prikladnicki
Foto de capa: Ramon Brant
Se Deleuze e Guattari desconstruíram a psicanálise freudiana por meio da categoria do anti-Édipo, a peça O feio, da Ato Cia. Cênica, busca em outro mito sua razão de ser: encena uma paródia do autocentramento do sujeito na sociedade do espetáculo com um manifesto anti-Narciso. Por meio de transições ágeis entre cenas que remetem ao cinema de massa e tiradas sardônicas em diálogos que provocam identificação e mal-estar, o espetáculo alcança não apenas uma rara coadunação estética entre dramaturgia (do autor alemão contemporâneo Marius von Mayenburg) e encenação, como parece contornar o propalado dilema entre um teatro textual e um teatro físico.
Reflexivo sem derrapar no hermetismo e divertido sem apelar para o humor rasteiro, o trabalho é um sucesso de público. Embora a Sala Álvaro Moreyra, em Porto Alegre, seja um dos espaços mais reduzidos da cidade, inúmeras pessoas ficaram de fora da sessão a que assisti, na mais recente temporada. Fato notável para uma montagem que não é nova: estreou profissionalmente em 2012, oriunda de um trabalho do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Na ocasião, levou o Prêmio Açorianos de melhor espetáculo e ator coadjuvante (Paulo Roberto Farias). Daqui a alguns anos, provavelmente lembraremos de O feio como um trabalho que revigorou a cena local.
O texto desvela as agruras de Lette (Rossendo Rodrigues), um engenheiro exemplar que desenvolve um conector de alta tensão mas é impedido de divulgá-lo em uma conferência devido à sua feiura. A honra cabe ao assistente Karlmann (Marcelo Mertins). O episódio aciona em Lette um espanto sobre sua própria aparência física similar ao de Vitangelo Moscarda no romance Um, nenhum e cem mil, de Pirandello (adaptado ao teatro pelo ator Cacá Carvalho como Umnenhumcemmil). Ambos, Lette e Moscarda, correm para suas mulheres a fim de confirmar o diagnóstico de imperfeição. Cabe a elas revelar o que seus maridos não haviam percebido. O feio remete, ainda, a outras obras da literatura e da dramaturgia, como a recriação do humano em Frankenstein, de Mary Shelley, e, mais recentemente, o debate sobre clonagem da peça Um número, de Caryl Churchill.
Mais do que personagens dotados de uma psicologia realista, as figuras de ‘O feio’ aproximam-se de arquétipos que habitam a urbe moderna
O texto opera por meio de uma cadeia de significantes que remete ao falo (o conector, o nariz, a banana que come o Sr. Scheffler, chefe de Lette), metáfora da virilidade do protagonista que se esvazia de potência. Inconsolável, ele procura solucionar o problema por meio de uma cirurgia plástica. O sucesso é tanto que o cirurgião resolve reproduzi-la em outros pacientes, espalhando pela cidade um sem-número de indivíduos com o mesmo rosto. Por trás desse mecanismo reprodutor de identidades, está o ímpeto narcisista de personagens que buscam urgentemente uma essência que não está lá. Encontram, no lugar disso, um espelho. E isso parece bastar.
Cada ator vive dois personagens (à exceção do que interpreta o protagonista), povoando a cena de duplos com o mesmo nome. Paulo Roberto Farias é o chefe Sr. Scheffler e o cirurgião plástico Dr. Scheffler, as duas figuras de autoridade da trama, conferindo-lhes um tom caricatural que remete aos vilões de desenho animado. Danuta Zaghetto é a mulher de Lette e a amante idosa que estabelece uma relação ambiguamente incestuosa com o filho, interpretado por Marcelo Mertins – que, por sua vez, também representa o assistente de Lette. O filho da amante e o assistente são os dois nêmeses do protagonista: obtêm o mesmo rosto por meio de uma cirurgia e disputam as mesmas mulheres. Com máscaras idênticas, o espetáculo realiza, ao mesmo tempo, uma crítica a uma sociedade de aparências que eleva a beleza física ao status de entidade, a denúncia de um modo de produção em série de identidades vazias e o questionamento de uma promessa de felicidade baseada no sexo e no dinheiro.
Mais do que personagens dotados de uma psicologia realista, as figuras de O feio aproximam-se de arquétipos que habitam a urbe moderna. Lette é o Homem Comum contemporâneo, um sujeito idealista que se revolta quando o assistente boa-pinta é alçado à posição de garoto-propaganda do conector que ele, Lette, desenvolveu. Mas, como um político novato, não lhe resta alternativa senão dobrar-se à lógica corrupta do sistema, sob pena de ser levado pelo vórtice da irrelevância. Assim, aprende tardiamente o lema: não basta ser um criativo, é preciso saber se vender. Essa venda será, no seu caso, metafórica e literal.
Mayenburg (nascido em 1972) comprova a força expressiva da nova dramaturgia alemã, ao lado de autores encenados nos últimos anos na cidade, como Roland Schimmelpfennig (A noite árabe e as quatro direções do céu), Marianna Salzmann (Língua mãe – Mameloschn) e Lutz Hübner (O coração de um boxeador), mediados pelo Goethe-Institut Porto Alegre. Parece cada vez mais claro que o advento de uma época pós-dramática esbarrou em um equívoco de expectativa: como bem observou Derrida, deve-se desconfiar da morte do que quer que seja, uma vez que o morto carrega uma eficácia muito específica. Mais do que uma nova episteme que enterra o passado, assistimos da plateia à coexistência entre diferentes formas teatrais e performáticas, dramáticas ou não. Ninguém deveria se surpreender com a volta da dramaturgia porque ela simplesmente nunca foi embora.
No nível da encenação, a direção de Mirah Laline coaduna textualidade e fisicalidade como se fossem yin e yang. As marcações dos atores são meticulosamente calculadas, o que fica claro desde o piso desenhado com o espaço de cada segmento. Os muito bem preparados atores da Ato Cia. Cênica preservam um tom de sátira, exagerando as dicções e os gestos para alcançar, com sucesso, um efeito cômico. Faz parte do espírito da peça esse caráter moleque das atuações, como que denunciando e, ao mesmo tempo, celebrando a jovialidade da companhia.
Em sua trilha sonora, a produção aposta em músicas alemãs de diferentes extrações. Du hast, do Rammstein, aparece recorrentemente, inclusive como vinheta, pontuando momentos críticos da trama. A faixa que toca antes da sessão, enquanto o público toma seus assentos, é a espirituosa Lightning strikes, de Klaus Nomi. Antípodas em suas representações do compromisso entre dois amantes (a primeira, cínica; e a segunda, romântica), as faixas evocam, uma pelo avesso da outra, as turbulências do amor e das relações pessoais em tempos de crise.
Exemplar em seu propósito, O feio desmonta, peça por peça, os mecanismos de produção em série de felicidade que ilude o sujeito contemporâneo para expor a perversidade de sua lógica. O que move esse mecanismo homogeneizador é o medo da diferença. No desvio do objeto do desejo, resta o fetiche.
.:. Publicado originalmente no site do jornal Zero Hora, em 15/10/2015.
Ficha técnica:
Autor: Marius von Mayenburg
Direção: Mirah Laline
Com: Danuta Zaghetto, Marcelo Mertins, Paulo Roberto Farias e Rossendo Rodrigues
Figurinos: Marina Kerber
Criação de Luz: Lucca Simas e Luciana Tondo
Operação de Luz: Luciana Tondo
Cenografia: o grupo
Vídeos: João de Queiróz e Maurício Casiraghi
Operação de vídeos: Maurício Casiraghi
Trilha sonora pesquisada: Mirah Laline
Operação de som: Manu Goulart
Produção: Danuta Zaghetto, Luciana Tondo e Mirah Laline
Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.