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Artigo

O butoh da Sankai Juku

27.11.2015  |  por Dirce Waltrick do Amarante

Foto de capa: Jack Vartoogian

Em Nova York

Em outubro deste ano, na Brooklyn Academy of Music (BAM), tive a oportunidade de assistir a Umusuna: memories before history, espetáculo de uma das maiores companhias de dança butoh do Japão, Sankai Juku, fundada pelo coreógrafo Ushio Amagatsu, em 1975. Em 2013, o espetáculo já havia sido apresentado no Brasil, em São Paulo, por ocasião da 10ª Temporada de Dança, e no Rio de Janeiro, com enorme destaque, mas só agora estreou em Nova York e, por sorte, eu estava por lá.

A propósito do butoh/butô (há diferentes grafias para a palavra no Brasil), em japonês, a palavra é formada por dois ideogramas: bu, que significa dança, movimentos etéreos, pairar, mão etc.; e toh, que expressa golpear a terra, gestos contraditórios e concretos, pés… Mas, como adverte a estudiosa Maura Baiocchi, o significado da expressão butoh é muito amplo e não pode ser reduzido apenas à compreensão de sua etimologia.

Para Baiocchi, é igualmente difícil definir a dança butoh, já que ela nasceu da confluência de pensamentos artísticos ocidentais e orientais; portanto, seria uma dança sem convenções coreográficas delimitadas. Convém lembrar que o butoh nasceu no pós-guerra (alguns estudiosos acreditam que a primeira performance tenha acontecido no ano de 1959), numa época em que a cultura japonesa se via submissa à invasão de valores e de novos paradigmas de beleza e verdade vindos do Ocidente. A vanguarda japonesa, apesar de apresentar uma postura de rebelião contra essa invasão ocidental, não pôde deixar de se contaminar por ela.

O butoh é mais uma tentativa de articular a linguagem corporal do que de transmitir alguma ideia, e visa proporcionar a cada espectador uma viagem particular ao seu mundo interior

No tocante à dança butoh, ao mesmo tempo em que ela recebeu influência direta da dança clássica e moderna ocidental, também a contestou. No recém-lançado O soldado nu: raízes da dança Butô (Perspectiva), Éden Peretta afirma que fazem parte dos princípios poéticos do butoh “o retorno nostálgico às raízes primitivas da dança, evocando características pré-modernas e pré-ocidentais, assim como a utilização de forças expressivas irracionais e misteriosas […]”. Ainda assim, não se pode negar a influência da dança ocidental no butoh. Segundo Peretta, “desde o início do século XX, a dança ocidental esteve presente, em diferentes modos, em solo japonês, tornando-se assim um sólido ponto de referência no qual muitos artistas se inspiraram e contra o qual outros tantos se posicionaram. Nesse sentido, tanto a dança clássica como a moderna tiveram um papel importante – certamente em medidas diferentes – na configuração histórica da dança Butô”.

Um dos grandes nomes do butoh, Kazuo Ohno, teria sido fortemente influenciado pela coreografia do dançarino alemão Harald Kreutzberg, o qual lhe apresentou movimentos capazes de revelar as dimensões da alma. Sabe-se que o butoh é baseado na vida da mente e nas paisagens interiores como as lembranças, as experiências espirituais etc. Ohno costumava dizer que, no butoh, o corpo é a fantasia da alma.
Já Tatsumi Hijikata, outro mestre do butoh, criador de uma dança mais sombria, o ankoku butoh, acreditava que “as origens do butoh estão em uma terra selvagem, habitada por espíritos elementares, que a mente racional não pode alcançar”.

Cena da criação de Ushio Amagatsu Jack Vartoogian

Cena da criação de Ushio Amagatsu

Para Ushio Amagatsu, diretor e coreógrafo da companhia Sankai Juku, “o butoh é mais uma tentativa de articular a linguagem corporal do que de transmitir alguma ideia, e visa proporcionar a cada espectador uma viagem particular ao seu mundo interior”. É isso que se vê em Umusuna.

O título é uma palavra do japonês arcaico. “Umusu” significa nascer, começar a viver, vir ao mundo, e “na” evoca a terra, o sol, o país.

Dos sete atos do espetáculo, o segundo, intitulado Todos que nascem, é sem dúvida o mais impactante. No primeiro ato, o palco, branco e asséptico, acolhe um solo suave e lírico performatizado por Ushio Amagatsu. No segundo ato, porém, tudo muda, uma luz vermelha invade o palco e a música suave dá lugar a uma música sombria e enigmática. Talvez nascer seja de fato assustador. Os dançarinos que entram em cena têm características masculinas e femininas. Poder-se-ia entender que quem nasce não se sabe ainda homem ou mulher.
Nesse segundo ato, mais especificamente, há muito do grotesco, do feio, à moda do ankoku butoh, de Tatsumi Hijikata. Os dançarinos entortam seus corpos, desfiguram suas expressões faciais e abrem suas bocas num grito mudo de horror.

Os outros atos são mais delicados e leves e evocam a natureza e o útero materno. Não sem razão, no terceiro ato, intitulado Memória da água, os dançarinos, em posição fetal, giram no chão ou “nadam” nele como se estivessem no ventre da mãe.

Em Umusuna, percebe-se também uma forte influência do butoh de Kazuo Ohno, uma vez que essa coreografia dá grande destaque à dança das mãos, extremamente importante para o mestre japonês.

Difícil não se impactar com o butoh, pois tudo nessa dança é de certa forma extremamente potente, ainda que por vezes extremamente suave. É uma dança que muitas vezes é só um passo, uma careta, um levantar de dedo, um olhar.
Embora o butoh seja, antes de mais nada, dança, cabe lembrar, como afirma Baiocchi que ele “é ainda teatro, pois é expressão cênica. Também é performance, antes de risco e improviso […]”.

Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.

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