Crítica
19.12.2015 | por Beth Néspoli
Foto de capa: Frederico Chigança e equipe
Do trio de solos trazidos pelo cearense Ricardo Guilherme à II Bienal Internacional de Teatro da USP, Ramadança é o mais arriscado. Trata-se de um experimento de hibridização de linguagens, como já indica a palavra dança embutida no título, e há ainda maior radicalização no que diz respeito à autoria. Diferentemente dos dois primeiros trabalhos apresentados no evento, Bravíssimo e Flor de obsessão, ambos baseados na obra de Nelson Rodrigues, desta vez, além de atuar e dirigir, ele assina não só a dramaturgia, como também o texto.
Ramadã no calendário islâmico é o mês dedicado à renovação da fé, ao perdão e à caridade. Nesse período os muçulmanos devem jejuar e fazer doações aos mais pobres. Ramadança também se configura como uma espécie de rito. A longa ocupação moura à península ibérica, desde as primeiras invasões no ano de 711 até sua expulsão em 1492, deixou marcas profundas na cultura que, transportadas pelos portugueses ao Brasil, ainda hoje reverberam fortemente nas narrativas, na música, na dança e nas indumentárias dos brincantes da região Nordeste.
No teatro é sempre instigante quando se é convidado a construir significados apenas sugeridos. Claro que a matéria cênica precisa estimular esse movimento interno, cuja intensidade nunca será a mesma para todos os espectadores
Ricardo Guilherme toma tais relações históricas para compor uma dramaturgia fundada no reconhecimento das raízes comuns entre povos, com alusões às torres gêmeas, a chefes de Estado como George Bush e Saddam Hussein, ao continente africano e ao nordeste brasileiro. Talvez por esse aspecto ritual, em Ramadança a potência do texto resida mais nas sonoridades do que na semântica. Os significados da narrativa permanecem bastante abertos à diversidade de atribuição de sentidos.
O autor brinca com jogos de palavras e fonemas – Osama, Hosana, Zâmbia – que a um só tempo fazem reverberar similitudes sonoras e remetem o espectador a diferentes continentes e tempos históricos (vale lembrar que esse artista se autodefine também como escritor e poeta). Em uma espécie de mantra, com cadência e musicalidade da forma poesia, o texto chega ao ouvido do espectador em voz off e toma o espaço descolado do corpo do ator, recurso técnico que amplia o efeito de estranhamento. Simultaneamente, no centro do espaço cênico que tem o formato de arena, o ator circula lentamente, paramentado com vestido/manto suntuoso, cuja diversidade de cores e brilhos se altera com a incidência da luz.
No teatro é sempre instigante quando se é convidado a construir significados apenas sugeridos. Claro que a matéria cênica precisa estimular esse movimento interno, cuja intensidade nunca será a mesma para todos os espectadores, há sempre algo de imponderável no encontro palco/plateia. Em Ramadança tal estímulo, presente no primeiro terço da apresentação, perde potência à medida que a imagem inicial se esgota pela repetição, e as variações não contribuem para revitalizar a cena inaugural.
O principal desdobramento diz respeito ao boneco que o ator traz em mãos e, a certa altura, passa a destruir. Segundo informado em texto sobre o espetáculo, a figura em cena seria “a rainha do maracatu que se apresentaria como uma Medeia africana, mãe primordial, detentora do poder de vida e morte sobre seus filhos”. Talvez aqui se esteja diante de um daqueles casos de distância entre intenção e gesto. Mesmo para o espectador mais informado é difícil que tal significado possa vir à tona, ou qualquer outro, ao menos com força para afetar emocionalmente ou intelectualmente.
Quando o ator tira e atira ao chão a primeira perna do boneco, sem interromper o movimento circular, já é possível prever o despedaçamento que realmente ocorre sem surpresas, e toma um tempo muito longo. A timidez do gesto é agravada pela escolha do objeto. Enquanto a vestimenta carrega a beleza exuberante e característica das figuras de destaque nas manifestações da cultura popular nordestina, a criança em suas mãos é um desses bonecos de plástico fabricados em série. Talvez tenha havido intencionalidade na escolha, mas se existiu tal motivação, não alcançou tradução cênica significativa o bastante, e assim a precariedade do objeto ganha o primeiro plano, bem como a leitura de descuido na criação. Um crítico deve evitar ao máximo a prescrição, mas talvez uma redução temporal intensificasse a potência de Ramadança. Um daqueles casos em que o mais se tornou menos.
.:. Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12), em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.
.:. Leias as críticas de Beth Néspoli para os demais espetáculos do repertório de Ricardo Guilherme, Flor de obsessão e Bravíssimo, este também analisada por Daniele Avila Small, aqui.
A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).
Ficha técnica:
Texto, direção e atuação: Ricardo Guilherme;
Produtora executiva: Elisa Gonçalves de Alencar
Assistente de produção: Suewellyn Cassimiro Sales
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.