Crítica
Pouco antes do início do solo Bravíssimo, apresentado pelo artista cearense Ricardo Guilherme no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP, um confronto entre policiais e estudantes secundaristas – que há semanas vêm protestando contra a reorganização da rede estadual de ensino – provocou correria na Praça Roosevelt e alguns espectadores quase ficaram do lado de fora com o fechamento abrupto das portas da SP Escola de Teatro, local da apresentação. Pouco depois, no palco, em um jogo de palavras e sentidos com o lema positivista da bandeira brasileira o ator, já imbuído do papel de um conferencista de forma propositalmente estranhada (o que será abordado mais adiante), enuncia “desordem em progresso” como um possível devir, um movimento desejável para alterar o diagnóstico de certa paralisia do brasileiro diante da imensa tarefa de melhorar as condições de vida no país.
Bravíssimo, importante dizer, estreou há 15 anos e fragmentos como esse, talvez criados à época com o sentido de projeção e desejo, ganham novas reverberações neste momento de extrema desestabilização da ordem política brasileira. Mas seria redutor creditar unicamente à passagem do tempo o atrito entre criação poética e dados do real, uma vez que tal fricção parece ser busca central nesse solo que se configura como investigação sobre uma possível identidade brasileira tendo como plataforma de salto as crônicas escritas pelo dramaturgo Nelson Rodrigues entre 1950 e 1970.
Desses textos – muitos das citações reconhecíveis em cena estão nas crônicas compiladas no livro O reacionário, memórias e confissões, editado pela Record – Ricardo Guilherme extraiu duas figuras opostas no que diz respeito ao modo de ser e estar no mundo – a grã-fina de narinas de cadáver e a vizinha gorda e cheia de varizes. São figuras simbólicas. A primeira serve de paradigma para a crítica de uma elite econômica e intelectual cuja fantasia é “pertencer ao mundo” e nessa negação de pertencimento quer acreditar não possuir qualquer comprometimento com os rumos do país. No outro extremo, a figura clássica da vizinha que na obra do dramaturgo chega por vezes a constituir um coro é problematizada como modelo de visão territorial muito reduzida, representante do brasileiro que oscila entre o conhecido complexo de vira-lata, o sentimento de inferioridade dos ofendidos da base da pirâmide social e um patriotismo ufanista e feroz.
Ator de forte presença cênica e muitos recursos expressivos, Ricardo Guilherme conduz o público a atravessar um mar revolto de ideias e argumentos com desmedida rodriguiana
Ricardo Guilherme não toma tais figuras para reforçar oposições rígidas, ao contrário,detecta contradições e pontos de contato entre elas em busca de sínteses dialéticas. Desse embate de forças poderia surgir um movimento capaz de agir sobre o presente e alterar o futuro? O ator convoca o público a compartilhar tal investigação por meio de um jorro de ideias e palavras que (por vezes literalmente) lança do palco.
Aparentemente despojado, a elaboração neste trabalho pode ser percebida nos detalhes, a começar pela imagem do conferencista – o ator traz os longos cabelos grisalhos soltos sobre os ombros e nos lábios um batom muito vermelho – que parece desenhada para propiciar uma dose discreta de desconfiança, evitando a adesão total. A busca por estimular a reflexão pela via da dissonância é tônica que perpassa toda a teatralização.
Acomodar a cenografia, apenas microfone, mesa e cadeira, sobre um alto tablado igualmente não parece ser simples solução para a visibilidade, mas sinalização de que Ricardo Guilherme não atuará exatamente com um performer, sem a máscara de um personagem, ele próprio se dirigindo ao público. O tom das primeiras falas deixa evidente que sobre o palco estará uma figura cênica, descolada do cotidiano.
Nas modulações de voz e gestos ele ora emprestará sua corporeidade à delicadeza sussurrante da vertente grã-fina da argumentação ora vai encarnar “de maneira violenta e possessa a selvagem euforia do brasileiro que finalmente descobre que sua dignidade depende de sua indignação”. E no trânsito entre tais figuras o ator se dá o direito de brincar com as palavras, ora reciclando as famosas anedotas de Nelson Rodrigues ora criando suas próprias tiradas de humor inspiradas nessa fonte originária. Jogo lúdico do qual o corpo participa como quando um gesto remete o espectador à imagem da estátua da liberdade ao mesmo tempo em que o discurso é de ufanismo tupiniquim ou ainda quando desestabiliza o sentido positivo de um enunciado ao arrematá-lo com a sonoridade (suave e jocosa) de uma cuspida.
Ator de forte presença cênica e muitos recursos expressivos, Ricardo Guilherme conduz o público a atravessar um mar revolto de ideias e argumentos com desmedida rodriguiana. Procedimento cujo principal risco, o de fechar os espaços à atividade receptiva, é evitado pelas pausas em momentos estratégicos e pelo constante estímulo ao posicionamento, ainda que silencioso, do espectador.
No que diz respeito à passagem do tempo, o diagnóstico de inércia do brasileiro, quando vem à tona, talvez seja o aspecto do roteiro que mais provoque dissonância nesses tempos em que grã-finas e senhoras gordas tomam as ruas numa diversidade de manifestações raramente vistas. Por outro lado, apostando na possibilidade de movimento, diz o conferencista em tom otimista: “Quando tudo leva a crer que não há mais soluções previstas pelo arsenal de ideias já postas em prática, o brasileiro improvisa, inventa e se reinventa”. Um artista é alguém referenciado pela história, portanto pelo passado, que precisa responder às demandas do presente, mas cuja poética deve apontar para o futuro – se não exatamente com essas palavras, com esse ponto de vista Ricardo Guilherme já definiu sua arte em diversas entrevistas. Princípio que pode ser detectado em Bravíssimo.
Em tempos de virtualidade real e etapa avançada de globalização pode soar estranhamente retrógrada a escolha temática de problematizar uma possível identidade brasileira. Mas a ação cultural do território agindo como prisma sobre a visão de mundo é aspecto valorizado na pesquisa desse artista de 60 anos de idade que optou por manter sua base de criação no Ceará, ainda que tenha levado sua arte ao exterior e a diferentes cidades brasileiras. Não por acaso dedicou parte de seu tempo ao resgate de memória da criação artística local, tendo publicado livros sobre a história do teatro cearense. Ao que tudo indica, experimenta no próprio corpo os embates entre processos de desterritorialização e de valorização às referências culturais matriciais e vinculadas ao espaço geográfico.
Ator, dramaturgo, diretor, contista, poeta, jornalista, professor e pesquisador que fez sua iniciação artística atuando em rádio e TV, ele foi um dos responsáveis pela criação do curso de artes cênicas da Universidade Federal do Ceará, em 2009. Desde 1988 vem pesquisando uma poética própria que ele denomina teatro radical – termo que utiliza na acepção de raiz – cujo procedimento principal é a escavação do material de trabalho, sejam textos ou temas, a sua dissecação de maneira que seja possível expor o nervo central e assim trabalhar não com as situações, mas com aquela matéria nuclear, as vertentes opostas que fazem eclodir o conflito. Linha de pesquisa que claramente opera sobre a dramaturgia de Bravíssimo.
.:. Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12).
.:. Leia a crítica de Daniele Avila Small sobre Bravíssimo.
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A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).
Ficha técnica:
Texto, direção e atuação: Ricardo Guilherme
Produtora executiva: Elisa Gonçalves de Alencar
Assistente de produção: Suewellyn Cassimiro Sales
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.