Crítica
Num palco à penumbra, vestido preto e os braços melados de uma tinta amarela, Matheus Nachtergaele rasga-se em verso. Buscou os versos escritos por sua mãe, Maria Cecília, para fazê-los seus. Diz em primeira pessoa. Conta de loucuras, devaneios e amores. Mistura sofrimento e angústia às epifanias diante de um menino (ele) recém-nascido. Em Processo de conscerto do desejo, Nachtergaele poetiza seu passado e seu presente em um teatro essencialmente ritualístico. A peça foi apresentada nos dias 8 e 9, no Teatro de Santa Isabel, na abertura do Janeiro de Grandes Espetáculos.
A dramaturgia – textos em retalhos costurados por Nachtergaele no roteiro fragmentado – é o clarear de uma história familiar que estava silenciada. A mulher que se suicidou no dia em que seu filho seria batizado deixou marcas no caminho de sua cria, à época com apenas três meses de idade. Cecília morreu em meio a sentimentos turvos, mas encantada pelos momentos de vida de seu menino. Escrevia suas amarguras com a mesma intensidade que narrava o diário de seu bebê. A direção, do próprio ator, que explora recorrentemente blecautes e transforma a cena em muitos flashes, deixa em relevo uma memória em pedaços pelo tempo, reavivada como um quebra-cabeça que se monta pelas anotações.
É uma oração, como o próprio Matheus Nachtergaele costuma classificar, erguida através do seu corpo, de expressões simples e verborrágicas, visivelmente influenciadas pelo butô
Matheus Nachtergaele tem-se para seus personagens como um cavalo a ser galopado pelas histórias dessas criaturas – a maioria delas fictícia. Desta vez, o ator conta a história dele mesmo – inúmeras vezes companheiro de um espelho colocado no centro do palco e um dos pouquíssimos elementos de cenografia. Ao se refletir em cena e ao chacolhar o espelho à sua frente, o ator também remexe tudo que está dentro dele neste momento de autoconfissão. É o Nachtergaele em corpo, alma e sangue.
No ritual de declamações, acompanhadas de músicas dedilhadas ao violão por Luã Belik, o “cavalo” é montado por si mesmo e deixa pulsar nesse passeio aquilo que a mãe imprimiu no menino: a dor, mas longe de lamúrias. Ali o intérprete, se liberta das suas amarras fazendo da poesia materna água que limpa o passado. Enquanto fala, ele mancha o vestido preto com espalmas em tinta amarela: é a luz clareando a escuridão.
Há na encenação do espetáculo clara preocupação em dividir com a plateia as dores. O ator faz do público cúmplice dessa leitura, abre o palco para falar com seus interlocutores, chama-nos à cena de maneira a partilhar o que sente. É um espetáculo íntimo, de pausas próprias – algumas extensas, em que a música sobressai o verbo inenarrável. É uma peça claramente feita para um teatro de arena, uma vez que se precisa estar muito próximo a Nachtergaele para participar desta confissão. No Teatro de Santa Isabel, por exemplo, o teatro italiano (convencional) nos deixou distante dele e, por vezes, incongruente com seu silêncio, como na cena em que ele se senta aos pés do violonista e escuta uma canção.
Processo de conscerto do desejo traz em si a essência dos teatros de ritual. É uma oração, como o próprio Matheus Nachtergaele costuma classificar, erguida através do seu corpo, de expressões simples e verborrágicas, visivelmente influenciadas pelo butô (teatro-dança oriental focado no movimento preciso do corpo), basicamente centrada na palavra e na primorosa interpretação do ator. É o teatro em essência, de poesia libertadora.
.:. Publicado originalmente no blog Terceiro Ato, do Jornal do Commercio.
Ficha técnica:
Textos: Maria Cecília Nachtergaele
Com: Matheus Nachtergaele
Trabalho de corpo: Natasha Mesquita
Trabalho de voz: Célio Rentroya
Trabalho em artes visuais: Cláudio Portugal e Karina Abicalil
Iluminação: Bruno Aragão
Contrarregra: Cedeli Martinusso
Assistente geral: Fernando Peres
Produção: Miriam Juvino
Músicos: Henrique Rohrmann (violino) e Luã Belik (violão)
Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).