Crítica
Sinal dos tempos de crise ou mera coincidência, fato é que os monólogos vicejam nesse início de temporada em São Paulo. Denise Weinberg está com o seu Testamento de Maria; Thiago Fragoso encena As benevolentes; Luciano Chirolli se lança a Memórias de Adriano, adaptação do aclamado romance de Marguerite Yourcenar.
Autobiografia imaginária do imperador romano, o livro mergulha no que teriam sido suas ideias e vivências. Traz, é certo, fatos da época em que viveu Adriano. Também retoma algumas de suas medidas e realizações como político. Vai além, porém, ao imaginar tanto o ímpeto que o animava quanto as angústias que o cercavam. A luzidia figura do estadista deixa entrever as rachaduras provocadas seja pelo amor extremo seja pela iminência da morte – experiências, aliás, muito próximas se observadas pela descrição que nos oferta a romancista.
No espetáculo, em cartaz no CCSP, o texto da belga chega em adaptação de Thereza Falcão. Sua versão faz jus à literatura de Yourcenar, ao conservar, inclusive, alguns dos mais belos trechos do romance (e são inúmeras as passagens notáveis). A dramaturgia não se abstém, contudo, de privilegiar certos aspectos do original em detrimento de outros. Em especial, o peso dado à relação de Adriano com Antínoo, um adolescente que se suicida durante uma viagem dos dois. O enlevo e o tormento do imperador diante da paixão adquirem certa centralidade na leitura de Thereza. Lateralmente, surge sua ambição por justiça ou sua preocupação com o trabalho dos escravos.
Cabe enfatizar os méritos da interpretação de Luciano Chirolli. O vínculo quase imediato que estabelece com a plateia. Um caminho sinuoso que vai do abatimento da enfermidade à vivacidade da paixão
Escrito como uma carta endereçada a Marco Aurélio, futuro comandante do império, o romance é guiado por uma voz que passeia entre a narrativa histórica e a memorialística. Mas adquire tonalidade confessional mais proeminente no palco.
Outro traço a distinguir o espetáculo de sua matriz literária é o grifo feito na relação entre a narrativa de Adriano e a contemporaneidade. Amplamente debatido, o espelhamento entre as figuras de Yourcenar e a de seu personagem passa pelo relacionamento com alguém mais jovem – que também marcou a carreira da escritora – assim como pelo seu testemunho da barbárie de duas guerras mundiais. Muitos, por isso, já elegeram o político como seu duplo.
A direção de Inez Viana evidencia o vínculo com o presente com alguns procedimentos. O intérprete se despe das vestes de traços imperiais para adotar um terno de corte atual. Vale-se de um microfone para discursar. Conta com a presença de um músico, Marcello H, que interfere diretamente na cena. E recorre a um cenário que sobrepõe radiografias, como a evidenciar a fragilidade do corpo, a decrepitude e a doença que minam qualquer homem – mesmo aqueles que foram deuses em vida.
Algumas dessas escolhas cênicas conseguem dialogar com a interpretação de Luciano Chirolli. Mas, parte delas não cria senão um ruído a ser superado. É o caso da trilha executada ao vivo, pouco pródiga em acrescentar qualquer significado ou ganho estético à proposta.
Ressalvas feitas, cabe enfatizar os méritos da interpretação de Chirolli. O vínculo quase imediato que estabelece com a plateia. As mínimas nuances que logra transmitir. Um caminho sinuoso que vai do abatimento da enfermidade à vivacidade da paixão. A fé nas próprias ideias, o amor pelo que é belo e bom. Sua atuação é grande quando visceral, diante da perda e do medo. Ainda maior quando matiza algumas cenas com ironia quase subliminar. Um fio de zombaria delgadíssimo, mas essencial, a resguardar o personagem de qualquer autocomiseração. A engrandecer esse Adriano, que soa demasiado humano.
.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C3, em 12/2/2016.
Serviço:
Memórias de Adriano
Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1000, Metrô Vergueiro, tel. 11 3397-4002)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h30. Até 28/2
Quanto: R$ 20
Ficha técnica:
Adaptação dramatúrgica: Thereza Falcão
Direção: Inez Viana
Idealização: Felipe Lima
Diretora Assistente: Marta Paret
Com: Luciano Chirolli
Músico: Marcello H
Direção de produção: Mariana Serrão
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha sonora: João Callado e Marcello H
Figurino: Juliana Nicolay
Arte gráfica: Flavio Albino
Fotos: Daryan Dornelles
Preparação corporal: Márcia Rubin
Assessoria de imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Consultoria histórica: Claudia Beltrão
Produção executiva: Arilson Lucas
Assistência de produção: Carlos Darzé
Assistência de Figurino: Camila Cunha
Estagiária de produção: Luiza Martinez
Gestão das leis de incentivo: Natália Simonete
Realização: Sevenx Produções Artísticas e A Coisa Toda Produções
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.