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Crítica

Memórias de Adriano

12.2.2016  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Renato Mangolin

Sinal dos tempos de crise ou mera coincidência, fato é que os monólogos vicejam nesse início de temporada em São Paulo. Denise Weinberg está com o seu Testamento de Maria; Thiago Fragoso encena As benevolentes; Luciano Chirolli se lança a Memórias de Adriano, adaptação do aclamado romance de Marguerite Yourcenar. 

Autobiografia imaginária do imperador romano, o livro mergulha no que teriam sido suas ideias e vivências. Traz, é certo, fatos da época em que viveu Adriano. Também retoma algumas de suas medidas e realizações como político. Vai além, porém, ao imaginar tanto o ímpeto que o animava quanto as angústias que o cercavam. A luzidia figura do estadista deixa entrever as rachaduras provocadas seja pelo amor extremo seja pela iminência da morte – experiências, aliás, muito próximas se observadas pela descrição que nos oferta a romancista.

No espetáculo, em cartaz no CCSP, o texto da belga chega em adaptação de Thereza Falcão. Sua versão faz jus à literatura de Yourcenar, ao conservar, inclusive, alguns dos mais belos trechos do romance (e são inúmeras as passagens notáveis). A dramaturgia não se abstém, contudo, de privilegiar certos aspectos do original em detrimento de outros. Em especial, o peso dado à relação de Adriano com Antínoo, um adolescente que se suicida durante uma viagem dos dois. O enlevo e o tormento do imperador diante da paixão adquirem certa centralidade na leitura de Thereza. Lateralmente, surge sua ambição por justiça ou sua preocupação com o trabalho dos escravos.

Cabe enfatizar os méritos da interpretação de Luciano Chirolli. O vínculo quase imediato que estabelece com a plateia. Um caminho sinuoso que vai do abatimento da enfermidade à vivacidade da paixão

Escrito como uma carta endereçada a Marco Aurélio, futuro comandante do império, o romance é guiado por uma voz que passeia entre a narrativa histórica e a memorialística. Mas adquire tonalidade confessional mais proeminente no palco.

Outro traço a distinguir o espetáculo de sua matriz literária é o grifo feito na relação entre a narrativa de Adriano e a contemporaneidade. Amplamente debatido, o espelhamento entre as figuras de Yourcenar e a de seu personagem passa pelo relacionamento com alguém mais jovem – que também marcou a carreira da escritora – assim como pelo seu testemunho da barbárie de duas guerras mundiais. Muitos, por isso, já elegeram o político como seu duplo.

A direção de Inez Viana evidencia o vínculo com o presente com alguns procedimentos. O intérprete se despe das vestes de traços imperiais para adotar um terno de corte atual. Vale-se de um microfone para discursar. Conta com a presença de um músico, Marcello H, que interfere diretamente na cena. E recorre a um cenário que sobrepõe radiografias, como a evidenciar a fragilidade do corpo, a decrepitude e a doença que minam qualquer homem – mesmo aqueles que foram deuses em vida.

Chirolli na adaptação do romance de Marguerite YourcenarRenato Mangolin

Chirolli na adaptação do romance de Marguerite Yourcenar

Algumas dessas escolhas cênicas conseguem dialogar com a interpretação de Luciano Chirolli. Mas, parte delas não cria senão um ruído a ser superado. É o caso da trilha executada ao vivo, pouco pródiga em acrescentar qualquer significado ou ganho estético à proposta.

Ressalvas feitas, cabe enfatizar os méritos da interpretação de Chirolli. O vínculo quase imediato que estabelece com a plateia. As mínimas nuances que logra transmitir. Um caminho sinuoso que vai do abatimento da enfermidade à vivacidade da paixão. A fé nas próprias ideias, o amor pelo que é belo e bom. Sua atuação é grande quando visceral, diante da perda e do medo. Ainda maior quando matiza algumas cenas com ironia quase subliminar. Um fio de zombaria delgadíssimo, mas essencial, a resguardar o personagem de qualquer autocomiseração. A engrandecer esse Adriano, que soa demasiado humano.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C3, em 12/2/2016.

Serviço:
Memórias de Adriano
Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1000, Metrô Vergueiro, tel. 11 3397-4002)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h30. Até 28/2
Quanto: R$ 20

Ficha técnica:
Adaptação dramatúrgica: Thereza Falcão
Direção: Inez Viana
Idealização: Felipe Lima
Diretora Assistente: Marta Paret
Com: Luciano Chirolli
Músico: Marcello H
Direção de produção: Mariana Serrão
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha sonora: João Callado e Marcello H
Figurino: Juliana Nicolay
Arte gráfica: Flavio Albino
Fotos: Daryan Dornelles
Preparação corporal: Márcia Rubin
Assessoria de imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Consultoria histórica: Claudia Beltrão
Produção executiva: Arilson Lucas
Assistência de produção: Carlos Darzé
Assistência de Figurino: Camila Cunha
Estagiária de produção: Luiza Martinez
Gestão das leis de incentivo: Natália Simonete
Realização: Sevenx Produções Artísticas e A Coisa Toda Produções

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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