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Crítica

A (falta) de sentido da matéria

6.3.2016  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Euripides Laskaridis

Na abertura de Still life (Natureza morta), apresentado na programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, MITsp, há uma cena que pode ser considerada síntese do pensamento inspirador desse espetáculo. No palco, um homem com uma pedra nas mãos, sentado quase imóvel em uma cadeira, observa o movimento do público que se acomoda na plateia do teatro. Após soar o terceiro toque de campainha, sinal convencionado para o início da sessão, outro ator vem caminhando em direção às costas dele e, num gesto rápido e preciso, puxa a cadeira e a leva embora. O que estava sentado permanece exatamente na mesma posição, ainda olhando na direção do público, como se nada tivesse ocorrido. A técnica, impecável, é apenas detalhe. Importa a ideia. Retirado o que era aparentemente fundamental para dar sustentação a um organismo, este não cai.

Na primeira e mais evidente leitura esse suporte poderia ser tomado como o sentido, em geral dado por meio dos diálogos ou narrativas, como a significação que parece subtraída desse espetáculo sem palavras, cuja partitura seria a de uma sintaxe sem semântica, para usar a expressão do professor da USP Luiz Fernando Ramos. A tarefa de Sísifo é a base assumida dessa criação de impactante potência criativa, que tem concepção do encenador, cenógrafo e artista visual grego Dimitris Papaioannou. Porém parece evidente que a abordagem escolhida é a do escritor francês Albert Camus, que desconstrói no mito a associação entre a ausência de sentido e trabalho maçante.

A coreografia entre corpos e objetos de ‘Still life’ é tradução cênica da ideia de que o trabalho, definido como transformação da matéria pelo homem, pode ser embate pleno de vida e beleza

Na mitologia original, Sísifo enganou a morte e fugiu do Hades. Quando finalmente os deuses conseguem fazê-lo voltar é condenado a empurrar para sempre uma pedra do fundo do mundo dos mortos até o topo. Ali chegando, a pedra cai, obrigando-o a voltar às profundezas do Hades e à tarefa. Para Camus importa não o momento em que Sísifo sobe com mãos, rosto, ombros e pés colados à pedra (imagem retrabalhada no espetáculo com notável inventividade), mas sim quando desce sem a pedra, tempo em que tomaria consciência de sua condição. Para o filósofo existencialista, nesse intervalo Sísifo pode encontrar no trabalho em si o sentido para executá-lo. E assim aquela tarefa passa a ser escolha e ganha margem para a invenção.

O que está em jogo no pensamento que faz Camus voltar ao mito é o sentido da existência, ou melhor, a falta dele. A indagação central de seu livro O mito de Sísifo, no qual ele dialoga com Nietzsche, Dostoiévski e Kafka – escolhidos por terem ousado pensar sobre o absurdo da existência sem um sentido que a transcenda – é sobre o que mantém um homem vivo se Deus não existe. Se não há qualquer sentido para vida, então a saída coerente não seria o suicídio? A partir dessa pergunta Camus conclui que é possível sim ao homem lidar com a pura materialidade da vida, criar com ela, mesmo diante do sentimento absurdo advindo da certeza da ausência de qualquer sentido que transcenda a matéria.

Still life, e sua coreografia entre corpos e objetos, é tradução cênica da ideia de que o trabalho, definido como transformação da matéria pelo homem, pode ser embate pleno de vida e beleza. Note-se que o termo em inglês para Natureza morta, Still life, “ainda vida” em tradução literal, transporta melhor o pensamento na origem dessa encenação.

Ausência de suporte semântico não implica vale tudoJulian Mommert

Ausência de suporte semântico não implica vale tudo

Na partitura do espetáculo em cada série de movimentos há uma matriz que se repete com variações, mais ou menos sutis. Na primeira delas, a associação com o trabalho de Sísifo é mais evidente. A pedra, porém, é feita de um material penetrável, estranhamente leve e pesado ao mesmo tempo, com intrigante capacidade de regeneração, como se fosse uma esponja gigante que parisse vários seres híbridos. Objeto para ser fruído por sua forma mais do que por qualquer significação, espécie de signo da estética do espetáculo, fundado sobre a atuação inventiva do homem sobre a matéria.

A ausência de cores – a base é o preto e sobre ele os objetos têm tons de cinza e gelo – faz ressaltar texturas, volumes e densidades. Em um dos movimentos, uma placa de acrílico, o tecido de um vestido feminino, luz e som são os elementos usados para amalgamar repetição e criação.

Quase sempre há um ator descolado do grupo, vestido de negro como todos, observando de algum ponto da plateia. Também há um céu suspenso (uma espécie de abóboda celeste criada com um tecido muito fino pendurado que toma toda a parte superior do palco e dentro do qual uma densa fumaça de gelo seco é constantemente soprada). Vestígios dos deuses? Porém esse firmamento, ao qual não há qualquer tentativa de ascensão, se revelará apenas um lugar onde a água se acumula (a fumaça se condensa) e servirá de material para mais uma sequência de imagens abstratas e de intensa beleza.

A ausência de um suporte semântico – seja uma trama, narrativa ou sentido claro – não implica um vale tudo. Os movimentos seguem a proposta de abordagem do mito. No desfecho, entra em cena a transformação e consumo de alimentos, signo evidente da capacidade humana de ser criativo para cumprir tarefas repetitivas e obrigatórias.

Com Still life, Dimitris Papaioannou, que assina concepção visual, direção, figurinos e iluminação, experimenta a possibilidade de levar um pensamento sobre o homem à cena sem a mediação de uma narrativa que articule as partes em um sentido unívoco. Evidentemente, para ser coerente com tal proposição, não há que se tomá-la como modelo. É uma experiência em arte e, como tal, vale pela potência alcançada.

.:. Escrito no contexto da ação da Prática da Crítica na 3ª MITsp, parceria da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, esta formada pelo site Horizonte da Cena, blog Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e site Teatrojornal – Leituras de Cena.

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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