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Crítica

Concentração de tempos em Pommerat

12.3.2016  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Elisabeth Carecchio

A terceira edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) recebeu duas encenações de Joël Pommerat – Ça ira e Cinderela, com a Compagnie Louis Brouillard, sendo a segunda obra uma parceria com o Teatro Nacional de Bruxelas. Pommerat é conhecido do público pela dramaturgia de Esta criança, montagem de Marcio Abreu com a Companhia Brasileira. Sem deixar de valorizar as especificidades próprias dos espetáculos, cabe traçar associações entre ambos.

As encenações evidenciam acúmulos de tempos. Em Ça ira, Pommerat presentifica o contexto da Revolução Francesa ao trazer à tona conflitos entre integrantes de classes sociais diferentes e as autoridades instituídas, lideradas pelo Rei Luís XVI. Apesar da menção ao monarca do século XVIII, não há qualquer intenção de realizar em cena uma reconstituição de época. Os personagens parecem viver nos dias de hoje. Surgem em trajes contemporâneos, ainda que formais (figurinos de Isabelle Deffin).

Uma avaliação mais apressada tende a identificar contrastes entre as duas montagens – entre o teatro de texto, destituído de efeitos espetaculares, de ‘Ça ira’ e a construção estética sedutora de ‘Cinderela’

Em Cinderela, Pommerat atualiza a clássica fábula dos Irmãos Grimm. Distancia a protagonista, rebatizada de Sandra, dos padrões das heroínas tradicionais. De início, não é a impressão que fica. Sandra/Cinderela aceita prontamente todos os trabalhos pesados que a madrasta ordena, faz uma constante mea culpa ao se julgar merecedora do tratamento desfavorável. Mas Pommerat abre espaço para que o público se relacione criticamente com a personagem principal. A passividade dela talvez possa ser entendida como sinal de masoquismo ou de vaidade, no sentido de se apresentar diante do mundo como uma espécie de sofredora absoluta, quase ostentando esse estado. Ela desmonta essa estrutura de funcionamento ao tomar consciência do seu sistema de atuação.

Entretanto, até que alcance esse estágio, Cinderela/Sandra canaliza sua rebeldia adolescente para a Fada, justamente a única capaz de ajudá-la. A Fada afirma existir há 800 anos e vive num período como o de agora, no qual o telefone celular virou um vício, em especial no que se refere ao frisson pelas fotos. A madrasta e suas filhas vão ao baile do príncipe, onde toca música pop, vestidas em trajes de época. Sentem-se, claro, deslocadas.

A protagonista e o príncipe estão atados ao passado devido à dificuldade de elaboração da perda da mãe. Sandra acha que, se parar de pensar na mãe, ela morrerá de verdade. É uma negação da realidade porque a mãe, de fato, morreu. Essa interpretação distorcida decorre de um descompasso entre o que a mãe disse à beira da morte e o que Sandra, criança, compreendeu. Não por acaso, a parede do fundo do cenário se torna, em alguns momentos, um espelho embaçado e não cristalino como deveriam ser as paredes da casa de vidro onde os personagens moram. Se em Cinderela a desconexão entre fala e escuta se dá em esfera íntima, em Ça ira o pronunciamento público gera reações contundentes, passionais.

O Príncipe e a Cinderela, ao fundo, na releitura de PommeratCici Olsson

O Príncipe e a Cinderela, ao fundo, na releitura de Pommerat

As palavras reverberam de forma parcial, de acordo como são escutadas por cada indivíduo ou grupo social. Nos dois espetáculos, Joël Pommerat realça que não há como apreender a totalidade das situações, como perceber o contexto de maneira completa e impessoal. Tanto em Ça ira quanto em Cinderela, Pommerat destaca determinados ângulos, escolhas. O procedimento evoca, de longe, a câmera de cinema, que direciona o olhar do público, estabelecendo prioridades – em que pese, porém, a possibilidade do espectador interpretar, a seu modo, as imagens descortinadas à sua frente.

Em dados instantes de Ça ira, a plateia não tem acesso visual a certos acontecimentos. Pommerat elege um ângulo, no qual um personagem discursa aos que se encontram na lateral do palco, fora do campo de visão do público. É como se o espectador não fosse, propositadamente, privilegiado. Durante o espetáculo, os espectadores ouvem os sons das batalhas que explodem nas ruas, mas não testemunham os embates, a não ser aqueles que irrompem nos ambientes fechados onde o texto transcorre.

Também há cenas concebidas com a quarta parede, mecanismo que ignora a existência do público. Mas nessas o espectador acompanha “integralmente”, sem restrições de visualização. Em contrapartida, em outras, a quarta parede é quebrada e a montagem propõe uma simbiose entre a plateia ficcional, que assiste ao vivo às tomadas de posição dos políticos, e a do teatro, que vê o espetáculo. E há passagens em que atores e figurantes irrompem no meio da plateia, reagindo, através de aplausos e protestos, aos pronunciamentos proferidos no palco. Em Cinderela, a “câmera” registra o que se passa dentro e fora do salão onde acontece o baile do príncipe.

'Ça Ira' presentifica contexto da Revolução FrancesaElisabeth Carecchio

‘Ça ira’ presentifica contexto da Revolução Francesa

Eventuais analogias com o cinema não diminuem a natureza teatral do trabalho de Pommerat que, nesses dois espetáculos, defende a síntese. Em Ça ira, a cena é austera, composta de poucos elementos (grandes mesas forradas com toalha azul e vermelha, cadeiras), característica potencializada por uma iluminação dura, que sublinha a hierarquia entre os personagens, contrabalançada, contudo, por sequências expressivas à meia-luz. Em Cinderela há reduzidos objetos, mas estes entram e saem de cena num passe de mágica, transformando o palco, repleto de projeções, numa caixinha de surpresas (Eric Soyer assina a cenografia e a iluminação das duas montagens).

Se Ça ira coloca o público diante de intensa verborragia, a cargo de atores em tom natural, mesmo que em frequente exaltação, ao longo de mais de quatro horas de duração, Cinderela, concentrado em uma hora e quarenta minutos, convida à apreciação mais lúdica, norteada pela narração típica dos contos de fadas, que explica as imagens expostas à plateia e os sentimentos dos personagens, mas sem anular a chance de apropriação do espectador. Uma avaliação mais apressada tende a identificar contrastes entre as duas montagens – entre o teatro de texto, destituído de efeitos espetaculares, de Ça ira (perfil que pode fazer com que classifiquem equivocadamente a encenação como obsoleta) e a construção estética sedutora de Cinderela. Distintos, mas sintonizados, os espetáculos lançam questões instigantes sobre o teatro de Joël Pommerat.

.:. Leia a crítica de Beth Néspoli a partir de Cinderela.

.:. O site da 3ª MITsp.

 

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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