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Artigo

O nonsense e apolítico (?) Daniil Kharms

2.3.2016  |  por Dirce Waltrick do Amarante

Foto de capa: Lucie Jansch

Em 2014, o espetáculo A velha, uma adaptação do conto de mesmo nome do escritor russo Daniil Kharms (1905-1942), dirigido por Robert Wilson, chegou ao Brasil [1] e ajudou a dar visibilidade a um dos principais nomes da vanguarda russa dos anos 1930.

Ainda assim, Kharms é praticamente um desconhecido por aqui, o que, de certa forma, não é de admirar, pois, mesmo em sua terra natal, sua obra só veio à luz tardiamente, em 1980, quando começou a ser publicada.

Segundo Branislav Jakovljevic, autor do livro Daniil Kharms: writing and the event (2009), o escritor atingiu sua maturidade justo na época em que o regime stalinista investia numa política cultural que enaltecesse as ideias comunistas. Além disso, como afirmou Roland Barthes, “no universo stalinista, onde a definição, ou seja, a separação entre o Bem e o Mal, passa a ocupar toda linguagem, não há mais palavras sem valor […]”. Portanto, mesmo Kharms se proclamando um escritor apolítico sua obra foi censurada. Viam nela valores contrários aos interesses do Estado.

Em vida, ele publicou apenas dois poemas.

O grupo dele, o Rádiks, tinha por objetivo explorar uma arte ‘não emocional e antinarrativa’, marcada pela justaposição de efeitos cênicos que erradicava qualquer tipo de significado e didatismo

Em 1921, o escritor afirmou: “Eu trabalho com literatura, eu sou apolítico […] admito que discordo das políticas das autoridades soviéticas no campo da literatura […] eu peço, ao contrário das regulações governamentais existentes, uma editora livre para os meus trabalhos e para o trabalho de outros escritores próximos a mim, que junto comigo são membros de um grupo literário”.

Voltando à divulgação de sua obra no contexto brasileiro, em 2013 Kharms ganhou uma primeira antologia em língua portuguesa, Os sonhos teus vão acabar contigo. O livro, publicado pela editora Kalinka, foi traduzido e organizado por Aurora Bernardini, Daniela Mountian e Moissei Mountian. Nele, o leitor encontrará desde textos para crianças, poemas e causos, até o conto longo A velha, que teria inspirado Wilson, e sua peça de teatro Elizaveta Bam. Desse livro, retirei todas as traduções de fragmentos da obra de Kharms que citarei a seguir.

Segundo os estudiosos de Kharms, A velha e Elizaveta Bam estariam entre os poucos textos do escritor que podem ser considerados de fato finalizados. Muitos outros são pequenos excertos e anotações de um possível texto maior. Se por um lado essa escrita fracionada se deve à consciência do autor da impossibilidade de sua publicação e ao excesso de revisões e correções, por outro lado essa fragmentação é uma característica intrínseca à estrutura de sua narrativa, toda ela repleta de interrupções e de metatextualidades, como podemos verificar inclusive na sua peça “finalizada” Elizaveta Bam.

A propósito de sua peça, ela foi escrita de 12 a 24 de dezembro de 1927, especialmente para “As três horas esquerdistas”, um sarau de lançamento da Associação para uma Arte Real (OBERIU), da qual o escritor fazia parte e que aconteceu em 28 de janeiro de 1928.

Genial, Kharms morreu em hospital psiquiátricoDomínio público

Genial, Kharms morreu em hospital psiquiátrico

Performances, recitações de poemas, entre outras apresentações, fizeram parte do sarau. Ganhou destaque a estreia de Elizaveta Bam, com um cenário abstrato. O sucesso estrondoso da noite, no entanto, foi colocado abaixo no dia seguinte, quando surgiram críticas ferozes à peça.

Elizaveta Bam é composta de 18 “fragmentos”frouxamente conectados. O “1° fragmento” é um “melodrama realista”, o “2°”, uma “comédia realista”, mas há “fragmentos” completamente nonsense que remetem, por exemplo, a um “desabamento das alturas” ou a um “speech”.

Embora Kharms tenha afirmado as posições apolíticas de sua obra, como se viu, é inevitável não encontrar em Elizaveta Bamuma dura crítica ao regime de perseguição e tortura stalinista, além, evidentemente, de reflexos da biografia do escritor.

A protagonista da peça é acusada de ter cometido um assassinato do qual ela não se lembra:

 

“PRIMEIRA: A senhora sabe muito bem o que a espera.

ELIZAVETA BAM: Não, não sei de nada. Querem me matar?

PRIMEIRA: Será submetida à rigorosa punição!

SEGUNDA: De qualquer jeito, não vai escapar de nós!

ELIZAVETA BAM: Podem me dizer do que sou culpada?

PRIMEIRA: A senhora mesma sabe.

ELIZAVETA BAM: Não, não sei (bate o pé).

PRIMEIRA: Desculpe, não acreditamos na senhora.

SEGUNDA: É uma criminosa”.

 

Kharms também sofreu uma série de perseguições; aliás, como afirma Aurora Bernardini, “o terror stalinista do qual ele foi vítima não lhe deu trégua”.

Em 1924, Kharms foi detido por ter lido um poema de Nikolai Gumilióv, um intelectual que, depois da Revolução Russa de 1917, declarou-se monarquista. Em 1931, Kharms foi preso novamente, acusado, dessa vez, de ser membro de um grupo antissoviético de escritores para crianças. Ele foi condenado a três anos de trabalhos forçados.

O escritor parece ter herdado do pai esse destino atribulado. Antes de se casar com a mãe de Kharms, seu pai havia sido condenado à morte; no entanto, essa pena foi permutada por 15 anos de trabalho forçado. O crime do seu pai era estar ligado a um movimento populista.

O golpe mais duro para Kharms foi em 1937, quando o proibiram de publicar qualquer texto durante o período de um ano. O escritor passou fome. Em 1939, foi declarado mentalmente insano. Morreu em 1942, num hospital psiquiátrico.

A questão política em Elizaveta Bam é entrelaçada com situações nonsense, que de certa forma afastam do leitor qualquer sentimento de dor, de sofrimento ou de identificação com a personagem. Contudo, Kharms insiste ironicamente, parece-me, nesse envolvimento entre leitor e personagem criando um novo gênero teatral para alguns fragmentos da peça: “14°: PATHOS CLÁSSICO”; “15°: PATHOS DA BALADA”, etc.

No fragmento “17°: PATHOS FISIOLÓGICO, o único sentimento que ele despertará no leitor é ode perplexidade:

 

“MAMÃE (entrando): Camaradas. Esta mulher desprezível matou meu filho.

VOZES: Qual? Qual?

ELIZAVETA BAM: Mamãe, mamãe, o que você está dizendo?

(Iván Ivánovitch acende um fósforo.)

MAMÃE: Por sua causa a vida deles não deu em nada.

ELIZAVETA BAM: Mas do que você está falando?

MAMÃE (com o rosto petrificado): Iikh! iikh! iikh!

ELIZAVETA BAM: Ela perdeu o juízo.

(O pai tira um lenço e dança sem sair do lugar.)

MAMÃE: Eu sou uma lula.

(O cenário começa a se transformar de paisagem em quarto. As coxias engolem papai e mamãe.)”

 

Essa característica nonsense da peça reforça as ideias do grupo teatral Rádiks, que Kharms fundara com amigos, em 1926. O grupo tinha por objetivo explorar uma arte “não emocional e antinarrativa”, marcada pela justaposição de efeitos cênicos que erradicava qualquer tipo de significado e de didatismo.

Os membros do Rádiks insistiam num teatro nonsense, que décadas depois foi reabsorvido por “absurditas” como Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Fernando Arrabal etc. Bem poderia ser um diálogo de A cantora careca a seguinte passagem de Elizaveta Bam:

 

“ELIZAVETA BAM: Iván Ivánovitch, vá até o meio bar e traga uma garrafa de cerveja e ervilha.

IVÁN IVÁNOVITCH: Ahá, uma ervilha e meia garrafa de cerveja ir até o bar, e de lá pra cá.

ELIZAVETA BAM: Não é meia garrafa, é uma garrafa inteira, e não é para ir até o bar, é para ir até a ervilha.

IVÁN IVÁNOVITCH: Agora mesmo vou cobrir a peliça com o meio bar, e botar meia ervilha na cabeça”.

Wilson ensaia Baryshnikov e Dafoe em 'A velha'Lucie Jansch

Wilson ensaia Baryshnikov e Dafoe em ‘A velha’

Os estudiosos de Kharms acreditam ser evidente que o tema central de sua peça seja o problema ou a dificuldade de comunicação. Como, mais uma vez, não lembrar de Ionesco, Beckett e de seus personagens que não conseguem parar de falar com intuito de se comunicar, mesmo “conscientes” de que se trata de uma empreitada impossível?

Em 1934, com sua peça sintética Um espetáculo fracassado, Kharms parece querer ilustrar o desastre de um teatro que tem por objetivo apenas contar uma história:

“ ‘Um espetáculo fracassado’

Petrakóv-Gorbunóv aparece no palco e tenta dizer algo, mas soluça. Tem um ataque de vômito. E vai embora.

Entra Pritýkin.

PRITÝKIN: O respeitável Petrakóv-Gorbunóv devia infor… (Tem um ataque de vômito e sai correndo).

MAKÁROV: Egor Pritý… (Makárov tem um ataque de vômito e sai correndo).

Entra Serpukhóv.

SERPUKHÓV: Como não… (Ele tem um ataque de vômito e sai correndo).

Entra Kurova.

KUROVA: Eu gostaria de… (Ela tem um ataque de vômito e sai correndo).

Entra uma menininha.

MENININHA: Papai pediu para dizer a todos que o teatro vai fechar. Nós estamos enjoados!

Pano”.

 

A Associação para uma Arte Real (OBERIU), dando continuidade às ideias propostas pelo grupo teatral Rádkis, defendia o teatro como um acontecimento independente de um enredo dramatúrgico:

“Se um ator no papel de um ministro começa a se coçar e engatinhar pelo palco e, além disso, a uivar como um lobo, ou se o ator no papel de camponês russo soltar de repente um longo discurso em latim – isso também será teatro e provocará interesse no espectador, mesmo que não tenha nenhuma relação com o enredo dramatúrgico. Será um momento independente, e uma série desses momentos organizada pelo diretor criará um espetáculo teatral com sua própria linha de enredo e com seu próprio sentido cênico.”

Mas os membros da OBERIU sabiam que todos os elementos no palco estavam subordinados ao enredo dramatúrgico: “A peça é uma história sobre um acontecimento qualquer contado por personagens. E todos no palco atuam para explicar o significado e a evolução desse acontecimento com o máximo de clareza, compreensão e proximidade da vida”.

Apesar disso, os membros do OBERIU insistiam que:

“(…) quando vieram nos ver, esqueçam tudo o que estão habituados a ver nos outros teatros. Talvez muita coisa pareça absurda. Tomamos um enredo dramatúrgico. No início ele se desenvolve de maneira bastante simples, depois, de repente, ele é interrompido por momentos aparentemente alheios e evidentemente absurdos. Os senhores ficam atônitos. Tentam encontrar o caráter rotineiro que imaginam ver a vida. Só que isso aqui não existe. Por quê? Porque o objeto e o fenômeno, quando transferidos da vida para o palco, perdem seu caráter ‘habitual’ e adquirem outro – o teatral.”

Fica o convite para explorar a obra e as ideias teatrais de Daniil Kharms ou Daniil Charms ou Chorms, ou Daniil Dandan ou Shardam, todos nomes de plume de Daniil Yuvachev. Por fim, cabe aqui lembrar que Kharms deixou também uma peça de teatro de bonecos para o público infantil intitulada Circus Shardam, infelizmente, ainda sem tradução para o português.

 

[1] A temporada de The old woman aconteceu no Teatro Paulo Autran – Sesc Pinheiros, em São Paulo, de 24/7 a 3/8/2015, encenada por Bob Wilson e protagonizada por Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe.

Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.

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