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Reportagem

Um rito para ver o sombrio

10.3.2016  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Sandro Silveira

O teatro é momento de sofrimento, uma dor compartilhada.

Angélica Liddell

Por que alguém escolhe como matéria de sua arte algo que muito provavelmente provocará um sentimento agudo de horror nos receptores? Tal interrogação pode vir à mente dos (potenciais) espectadores de Hysterica passio, texto da espanhola Angélica Liddell que aborda o ressentimento provocado pela dor tão lancinante quanto socialmente invisível que é a da criança abusada e torturada pelos próprios pais. O espetáculo, dirigido por Reginaldo Nascimento, com os atores Amália Pereira e Alessandro Hernandez – trio que integra o núcleo duro do Teatro Kaus Cia. Experimental – inicia nesta sexta-feira (11) nova temporada na cidade de São Paulo como parte de um projeto de circulação por cinco teatros distritais, apoiado pelo Prêmio Zé Renato de Teatro, que inclui mesas de debates e a edição de uma revista, tudo com acesso grátis.

Não há resposta simples para a indagação que abre este texto. Nelson Rodrigues dizia que era preciso encher o palco de doidos e pecadores para salvar o homem. Difícil imaginar que uma peça teatral tenha tal poder de redenção. Mas sem dúvida negar um aspecto da existência não produz o seu desaparecimento, ao contrário, o recalcado volta como fantasmagoria. A agressividade segue produzindo efeitos na sociedade das selfies sorridentes. A perda ainda fere e a morte permanece atravessando a carne nesses tempos em que velar um corpo deixou de ser um ritual caseiro e familiar para se tornar ato circunscrito a locais destinados a tal finalidade, alijados do olhar cotidiano, assépticos e impessoais. O cadáver, quando aparece, surge espetacularizado em exibição de violência que é outro modo de mascaramento. Oculto, nesse caso, é o objetivo de espalhar medo para vender segurança.

Dar a ver o invisível sempre foi aspecto valorizado da arte. E a atração por poéticas que abordam facetas da existência em geral mantidas na penumbra é traço perceptível na trajetória de 18 anos do Teatro Kaus, ainda que seu repertório abarque autores aparentemente díspares como Jorge Andrade, Plínio Marcos e Fernando Arrabal. O encontro com Angélica Liddell, de quem o grupo já encenou O casal Palavrakis (2012), não é ponto fora da curva. Questões como sensualidade reprimida e atração pela morte, basilares na dramaturgia dessa autora, também estão presentes em outras peças encenadas por Nascimento, como Vereda da salvação, de Jorge Andrade e O grande cerimonial, de Arrabal.

Olhar de frente, reconhecer a existência do que foi negado fortalece porque torna inteiro o que tinha partes faltantes

Num ensaio sobre Liddell, pesquisador espanhol Óscar Cornago credita a essa artista nascida em 1966 uma estética sem filiação aparente com a cena madrilena na qual ela surge, nos anos 1990. De acordo com ele, seus textos e performances são todos variantes das mesmas obsessões, como o suicídio e a posição da vítima, a redenção por meio do sacrifício, a dor, a perversão nas relações eróticas e o messianismo. Como dramaturga, ela segue contando histórias e criando personagens e suas narrativas não se furtam à análise de viés psicanalítico.

Não por acaso o núcleo familiar está em foco no que ela denominou Tríptico da Aflição: O casal Palavrakis, Once open a time in West Asphixia e Hysterica passio. Enquanto a primeira trata de cônjuges cúmplices em homicídios e a segunda do erotismo explosivo de duas adolescentes, o último, já a partir do título, faz referência ao diagnóstico de histeria lançado sobre mulheres sexualmente reprimidas e aprisionadas em papeis sociais determinados, como mãe e esposa, nos primórdios das pesquisas de Freud. Thora, a mãe perversa, é prisioneira da (de)formação que é sua herança familiar.

Cornago prefere localizar na estética barroca, com seus excessos e tensões de contrários, a filiação de Liddell em cuja criação ele destaca um perene atrito entre pureza e a escatologia, sublime e grotesco, inocência e culpa – polos opostos que, sem jamais alcançar síntese dialética, resultam na aberração. Importante dizer que a argumentação do pesquisador se refere ao conjunto da criação da artista que também atua, dirige e cria as cenografias-instalações de seus espetáculos. O excesso e o caráter de cerimônia ritual, facetas que sublinha, puderam ser conferidas na performance Eu não sou bonita, solo de Liddell apresentado na programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em 2014. Na ocasião, uma das apresentações foi interrompida por jovens ativistas em protesto contra a presença de um cavalo (real) no palco – figura que no contraste entre a imagem de virilidade e a presença silente configurava a citada confluência de opostos.

Porém, da obra de Liddell, o Teatro Kaus toma apenas o texto para encená-lo em concepção original, em linguagem que não se pode chamar de excessiva, ao contrário, tem a contenção como marca de estilo. Mas a polaridade está presente, por exemplo, no contraste que a cor vermelha provoca na cenografia, predominantemente branca, ou na suavidade da voz adotada por Hernandez quando na pele do menino Hipólito fala das fraturas sofridas e da vingança planejada. E ainda nos objetos cênicos que remetem ao circo e são a um só tempo lúdicos e horrendos como a jaula que encerra a mãe (Amália), a enfermeira Thora, objeto de forte carga simbólica uma vez que tanto esconde quanto exibe o bizarro, atiça e também limita a força destrutiva da fera que encerra. Sem contar que pode ser apreendido como objeto metafórico de sua própria prisão psíquica.

Atrito similar atravessava a montagem inaugural do Teatro Kaus, Vereda da salvação (1998). Sobre essa peça, o crítico Antônio Cândido aponta como central a tensão polar entre o ideal e o real sem perspectiva de solução, no mundo estático dos sertanejos submetidos a condições de sobrevivência miseráveis. Ainda na visão do crítico, culpa e inocência, delírio e realidade, sonho e sofrimento, pureza e sensualidade são polos inconciliáveis que provocam o desvio monstruoso na personalidade do líder de seita Joaquim (Hernandez) que, junto com sua mãe (Amália), conduz à morte dezenas de homens e mulheres aos quais promete um voo libertador rumo ao Paraíso.

Pois na apresentação de Vereda da salvação acompanhada por esta crítica, na segunda temporada do espetáculo, em 2005, um homem levantou na plateia, num ímpeto, estendeu o braço, sussurrou um “não” audível e logo sentou constrangido com o próprio comportamento.  Não era, foi possível constatar, um não iniciado. O gesto naïf  se deu por envolvimento e fora fruto do impulso de tentar evitar a tragédia anunciada no momento exato em que um personagem decide fazer uma denúncia ao líder da seita. O ator e diretor francês Antonin Artaud dizia que o teatro deveria ser capaz de fazer o espectador gritar. Sem dúvida co-mover é uma das perseguições da arte cujo alcance é de difícil mensuração.

Alessandro Hernandez e Amália Pereira em 'Hysterica passio'Sandro Silveira

Alessandro Hernandez e Amália Pereira em ‘Hysterica passio’

Em 2001, o grupo leva ao palco Oração para um pé de chinelo, de Plínio Marcos, autor cujas peças, se não podem ser consideradas tragédias no sentido clássico, têm personagens trágicos no modo como seus destinos são marcados desde o nascimento por sua condição social. Bereco, o protagonista, sonhava ter um carrão, e para isso comete um assalto. Acuado, tem dinheiro e fome, pois não pode sair do esconderijo para comprar comida. E não escapará da violência que ronda vida e morte de todos os personagens desse autor santista.

O protagonista de O grande cerimonial (2010) também era alguém tomado pelo conflito entre ceder à própria sensualidade ou perseguir a pureza absoluta e nesse processo seduzia e matava mulheres. Evidentemente tanto no caso de Jorge Andrade quanto no de Plínio Marcos o foco da atenção está na organização social e sua intervenção nos comportamentos. O que não invalida o argumento sobre as escolhas do grupo e faz retornar à interrogação inicial.

Olhar de frente, reconhecer a existência do que foi negado fortalece porque torna inteiro o que tinha partes faltantes. E a ousadia de dar a ver o recalcado é um dos atributos dos integrantes do Teatro Kaus Cia. Experimental demonstrado na preferência por poéticas que abordam facetas sombrias da existência, como é o caso da dramaturgia da espanhola Angélica Liddell. Sem apelação. Sem espetacularização. O objetivo não é incomodar o espectador, mas convidá-lo à experiência ritual de ver junto.

Serviço:
Hysterica passio
Onde: Teatro Zanoni Ferrite (Avenida Renata, 163, Vila Formosa, tel. 2216-1520)
Quando: Sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até 13/3
Quanto: grátis
Duração: 80 minutos
Recomendação: 14 anos

Onde: Teatro Martins Pena, Centro Cultural da Penha (Largo do Rosário, 20, tel. 22950401)
Quando: Dias 18, 19 e 20 de março, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h

Onde: Teatro Alfredo Mesquista (Avenida Santos Dumont, 1.770, Santana, tel. 2221-3657)
Quando: Dias 8,9 e 10 de abril, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h

Onde: Teatro Cacilda Becker (Rua Tito, 295, Lapa, tel. 3864-4513)
Quando: Dias 15, 16 e 17 de abril, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h

Onde: Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 2297-4002)
Quando: Dias 22,23 e 24 de abril, sexta e sábado às 19h; domingo às 18h

Ficha técnica:
Autora: Angélica Liddell
Tradução: Aimar Labaki
Direção: Reginaldo Nascimento
Com: Amália Pereira e Alessandro Hernandez
Cenografia, iluminação e trilha sonora: Reginaldo Nascimento
Figurinos: Telumi Helen

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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