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Crítica

Sublimes e sórdidas pessoas

28.4.2016  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Andre Stefafno

Dotados de energia esfuziante, os atores enchem a sala preta do Espaço dos Satyros Um com roupas e cabelos coloridos. Nos rostos, próteses e (muita) maquiagem. Apesar de estarem ali para representar personagens extraídas de situações reais, nada os aproxima de uma encenação naturalista. Ao contrário, a atmosfera de Pessoas sublimes é etérea, nebulosa, lusco-fusco. Aos poucos, o espectador que esperava uma continuação de Pessoas perfeitas, trabalho anterior da companhia, vai percebendo que permanece a mesma estrutura, mas está diante de um relato bastante distinto, sobre a morte e o sentido da vida. Alguns dos atores interpretam fantasmas.

Segunda obra da Trilogia das Pessoas, Pessoas sublimes desloca o olhar do centro de São Paulo para o extremo sul da metrópole. Na primeira, Pessoas perfeitas, o foco eram os moradores da Praça Roosevelt, no centro, onde desde o ano 2000 a companhia mantém sua sede. O local, antes dominado por cafetões e traficantes de drogas, tornou-se de lá para cá um ponto de encontro de artistas e intelectuais. Os Satyros abriram caminho para a vinda de outras companhias, tornando a praça um polo de teatro independente na cidade. Seus habitantes, por sua vez, já foram retratados em outros espetáculos, como Transex, de 2004, ou por outros artistas que por ali passaram, como a autora alemã Dea Loher, com A vida na Praça Roosevelt, de 2005.

O dramaturgista de Pessoas sublimes, Guilherme Dearo, afirma no prefácio do livro da peça (Editora Giostri, 2016), que Ivam Cabral e Rodolfo García Vásquez, fundadores de Os Satyros, possuem mais de 200 relatos de habitantes da praça ou de seus arredores, coletados desde 2006. Durante o período de ensaios, que durou oito meses, o elenco visitou grupos de ajuda como Alcoólicos Anônimos e Pessoas que Amam Demais. Não se trata, porém, de teatro documentário, mas sim de apropriações ficcionais de elementos da própria vida.

Na contemporaneidade o sentimento trágico está enfraquecido e as tragédias passaram a ser vividas como delírio

Pessoas Sublimes se passa em um condomínio em Parelheiros, zona sul de São Paulo. O bairro tem uma curiosa história de ter se desenvolvido em uma cratera provocada pela queda de um meteorito. Lá ainda vivem índios e descendentes de quilombolas. É um dos locais mais afastados do centro, pouco povoado, pobre e de difícil acesso. Nos condomínios, porém, a situação é diferente – e a população não é a mesma. Cercado pelas represas Billings e Guarapiranga e com duas áreas de preservação ambiental, a região tornou-se atrativa para empreendimentos imobiliários.

O condomínio Lago Verde, cenário da peça, é um desses espaços. Lá vivem Doresdei (Bel Friósi) e sua tia Imaculada (Sabrina Denobile). Aparentemente fútil, Doresdei sente vergonha de dizer que é virgem e se mostra histericamente sedutora. Porém, é lúcida ao proteger Imaculada e os interesses da família. A tia, que perdeu o marido em um acidente de avião, alusão à tragédia da TAM em 2007, vive em um luto contínuo desde então. Sua sina só será modificada quando Tulipa (Luiza Gottschalk), uma naturalista que mora no condomínio com Murilo (Fábio Penna), seu marido, entra em contato. Tulipa está na fase avançada de um câncer e busca alguém para ficar no seu lugar de esposa. Imaculada lhe parece ser a mulher ideal, pois é carinhosa e nunca vai deixar de amar o marido morto.

Em outro núcleo de Pessoas sublimes, estão Sonata (Fernanda D’Umbra) e Melodia (Maria Tuca Fanchin), duas irmãs que moram juntas. A primeira teve uma vida cheia de realizações ao lado de amigos, mas agora se encontra doente, com sintomas de Alzheimer. A segunda transformou seus ressentimentos em uma carreira exitosa como burocrata de um banco. Sonata foi outra possibilidade de Tulipa na sua busca por uma nova esposa para Murilo, mas foi descartada no momento em que ficaram evidentes seus esquecimentos. Sonata e Imaculada são personagens opostas, uma com falta de memória, outra com excesso.

Parte dos atores de 'Pessoas sublimes', d'Os SatyrosAndre Stefafno

Parte dos atores de ‘Pessoas sublimes’, d’Os Satyros

Ao lado desses núcleos convivem personagens soltos, como o adolescente Arcanjo (Henrique Mello) e Uilso (Eduardo Chagas). E há também um núcleo de mortos, com Desatino (Ivam Cabral), criança que se matou para fugir de abusos sexuais do pai, Tresvario (Gustavo Ferreira), matemático e ex-funcionário da Bolsa de Valores que enlouqueceu com sua obsessão por números, e Insânio (Felipe Moretti), fotógrafo especializado em retratos de mortos.

Delírio (Helena Ignez) é a única personagem capaz de entrar e sair do mundo dos vivos e dos mortos. Não se sabe, porém, a qual dos mundos ela pertence, ou se pertence a algum. No livro El sentimiento delirante de la vida (Edicones Diva, Buenos Aires, 2011), o psicanalista francês Eric Laurent afirma que na contemporaneidade o sentimento trágico está enfraquecido e as tragédias passaram a ser vividas como delírio. Nesse sentido, o nome da personagem é mais do que apropriado, pois cria um potente ponto de indeterminação. O espectador fica sem saber se está diante de um relato exotérico, com espíritos sendo reais no Real da fábula, ou de uma narrativa fantástica, na qual os mortos continuam a viver somente na imaginação de Delírio.

A Trilogia das Pessoas é um caminho aberto na trajetória da companhia, que neste momento também está em cartaz com três das quatro peças de sua quadrilogia Libertina. Sublime e sórdida, Pessoas sublimes garante uma continuidade estética e é uma obra instigante, que desperta o pensamento crítico sobre vida e morte. Provavelmente seguirá a exitosa carreira de Pessoas perfeitas, que recebeu prêmios no ano passado (melhor peça, pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e texto, pelo Prêmio Shell). Há, porém, que se levar em conta algumas questões que merecem ser refletidas com mais rigor.

O que difere essas pessoas morarem em um condomínio em Parelheiros? Em Pessoas perfeitas, a relação com o espaço urbano era o fio condutor, mas agora não se esclarece a relação dessas personagens com o local. Há questões urgentes que são ali tratadas, cuja peculiaridade do condomínio não é evidente, dando a impressão que o espaço do drama poderia ser qualquer outro.

Em toda a peça, é possível entender que houve um esforço na criação das personagens de modo a apresentar o que é universal no particular de cada um. Considerando a escolha da companhia pelo teatro narrativo, notam-se diferenças no acabamento de cada uma delas. As bem estruturadas Dorisdei e Sonata, por exemplo, contracenam com outras fracamente construídas, como Tresvario e Melodia. A obsessão do primeiro é apresentada como cômica, sem que seu sofrimento fosse digno de ser lamentado. A segunda cai na obviedade de transformar seu fracasso pessoal em uma pessoa eficiente, porém amarga. Para citar alguns exemplos, essa é a mesma caracterização da personagem Renata, na peça Nunca ninguém me disse eu te amo, de Franz Kepler (2006), e de Perpétua, no romance Tieta do agreste, de Jorge Amado.

Os atores Henrique Mello e Bel FriósiAndre Stefafno

Os atores Henrique Mello e Bel Friósi

Não por acaso, as melhores atuações são as de Bel Friósi e Fernanda D’Umbra. A performance de Friósi enfatiza a complexidade de Doresdei, com o corpo levemente engessado, revelando a inadequação entre os sentimentos e a fala da personagem. Fernanda D’Umbra, por sua vez, revela uma Sonata potente em suas fraquezas, falando com o público de maneira realista em apartes, mas revelando-se frágil diante da dureza da irmã.

Entre um extremo e outro está Arcanjo. O garoto, fanático por jogos eletrônicos, expressa desejos sádicos e cruéis. Essa associação games/violência é senso comum e não é apoiada por pesquisas sobre o comportamento dos jogadores. Inevitável não lembrar o filme Elefante, de Gus Van Sant (2003), no qual dois adolescentes praticam atos homossexuais entre si e jogam antes de cometer o massacre de Columbine. A relação com os games é espúria, mas cabe salientar que em Pessoas sublimes Ancanjo representa o ódio de uma geração que não reconhece limites para além de sua vontade pessoal.

Infelizmente, a participação de Phedra de Córdoba foi interrompida na primeira temporada, devido a problemas de saúde (ela morreria no último dia 9). A atriz interpretava uma cantora muda, que recebia o público antes dos demais artistas entrarem em cena.

.:. Leia as críticas de Gabriela Mellão e Valmir Santos a partir de Pessoas sublimes.

Serviço:
Pessoas sublimes
Onde: Espaço dos Satyros Um (Praça Franklin Roosevelt, 214, Consolação, tel. 3258-6345)
Quando: Sexta e sábado, às 21h. Até 7/5
Quanto: R$ 20 e R$ 5 (moradores da Praça Roosevelt)
Duração: 110 minutos
Classificação: Livre

Ficha Técnica:
Autores: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Encenação: Rodolfo García Vázquez
Assistente de direção: Marjorie Serrano
Com: Bel Friósi, Eduardo Chagas, Fábio Penna, Felipe Moretti, Fernanda D’Umbra, Gustavo Ferreira, Helena Ignez, Henrique Mello, Ivam Cabral, Luiza Gottschalk, Maria Tuca Fanchin, Phedra de Córdoba e Sabrina Denobile
Cenários: Marcelo Maffei
Figurinos: Bia Pieratti e Carol Reissman
Iluminação: Rodolfo García Vázquez e Flávio Duarte
Trilha sonora: Henrique Mello
Próteses: Eduardo Chagas
Perucas: Lenin Cattai
Dramaturgismo: Guilherme Dearo e Nina Nóbile
Fotografias: Andre Stefano
Divulgação: Diego Ribeiro
Coordenação de produção: Daniela Machado
Produção Executiva: Sílvio Eduardo
Administração: Israel Silva

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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