Crítica
Em suas pedras angulares para uma filosofia da fotografia, o tcheco Vilém Flusser (1920-1991), que viveu mais de três décadas no Brasil, compreende imagem como superfície sobre a qual circula o olhar. O espetáculo Pessoas sublimes, da Companhia de Teatro Os Satyros, faz da mediação imagética o seu “chão de circularidade”, abertura flusseriana para o eterno retorno. Na peça, figuras e personagens vão e vêm em fragmentos, criados e recriados numa paisagem esmaecida, sob mutante penumbra. A rarefação de luz diz muito sobre os estados de espírito apanhados em diferentes estágios da vida (e pós-morte, na licença poética dos autores).
No espaço cênico, cortinas que tomam do piso ao teto deslizam de uma lateral a outra, compondo camadas à frente e ao fundo. O tecido rendado vira tela para retroprojeções com ares de cinemascope. Os sentidos da visão tornam-se texto autônomo no jogo de desvendamento e ocultação proposto.
A expressão deformada e os traços grotescos demandam atores conscientes de que a sutileza pode constituir bem-vinda estratégia para não se deixar engolir pela opacidade
Um astro deixa de ser visível quando a lua ou um planeta se interpõe entre ele e o observador terrestre. Isso lembra a função do obturador, o dispositivo da câmara fotográfica que controla a duração da exposição da chapa sensível. É na base desse atrito que se processa a magia na encenação de Rodolfo García Márquez para os 23 quadros escritos por ele e pelo ator Ivam Cabral, a partir da colaboração do elenco (magia é expressão banalizada, porém pertinente ao ritual em questão).
Encenação e narrativa operam como o lambe-lambe que trabalha encoberto por tecido preto. Aquela prática artesanal consiste em capturar o mundo através do orifício da caixa de madeira convertida em aparelho-laboratório e equilibrada sob tripé também amadeirado. Cada enquadramento carrega o DNA de quem o faz. Esse fotógrafo de aura amadora e tão popular no interior do país de décadas atrás aparece nas cenas finais. Insânio é um sujeito quase oculto entre as histórias elencadas. A dele está vinculada ao ofício de retratar os mortos. Como aqueles do enredo que terminam abrigados sob o mesmo teto, numa festa, e o estimulam a “brincar de fotografia”. Acontece então o único instantâneo coletivo nessa obra que abandona o pensamento casual e linear sem prescindir das razões técnicas e artísticas para dar vazão às memórias efetivas, apagadas ou imaginadas.
Pessoas sublimes atualiza a capacidade d’Os Satyros de dilatar noções temporais e espaciais do que se narra na diminuta arquitetura de sua sala principal, combinando soluções despojadas e eficientes em cenografia, desenhos de luz e som, elementos substanciais à “biodiversidade” que os atores cohabitam.
Em dezoito passos, cadenciados, o espectador tem o ingresso recolhido no saguão, atravessa o corredor de camarins improvisados nas laterais, cujas rendas permitem entreolhar os integrantes do elenco ajeitando maquiagem, figurinos e adereços, até pisar o vazio embrionário do espaço cênico e igualmente cruzá-lo para ocupar um dos 60 lugares da sala. Esse rito variou poucas vezes desde que o grupo instalou-se, em 2000, no térreo do número 214 da movimentada praça da região central de São Paulo, a Franklin Roosevelt.
A experiência atual religa à divisora A vida na Praça Roosevelt (2005), peça da alemã Dea Loher, dirigida e cenografada por Vázquez, quando o microcosmo local e a percepção expandida da cidade passaram a ter abordagens mais articuladas ao contexto urbano).
Sendo a segunda parte da chamada Trilogia das Pessoas, que abriu com Perfeitas (2014) e em breve fechará com Brutas, a nova criação é apoiada por subjetivações de um condomínio fechado no distrito de Parelheiros, zona sul, oásis em área exuberante em meio a mananciais e mata nativa, mas com cidadania a reboque de baixo índice de desenvolvimento humano. O que está posto em relevo é a natureza, a interdependência das condições animal, vegetal e humana. Para esse território – que conhece bem porque tem residência lá – Cabral transpõe a ação da peça e o portal pelo qual transitam mortos e mortais
A dramaturgia traduz um exercício de escuta de atravessamentos, livre de dar conta de sintetizar as entrevistas realizadas com moradores locais. Uma escrita profundamente permeada pela vivência dos cofundadores da companhia, Cabral e Vázquez. Ambos se deixam nutrir por relatos pessoais ou alheios trazidos pelos atores.
As facetas, respectivamente, atuante e montador de Cabral e Vázquez dotam a dramaturgia de uma vinculação inexorável à fala e à cena. As rubricas que costumam orientar os encenadores evaporam em favor da tríplice voz ator-criador-narrador. Fazem parte desse jogo de revezamento os textos do “eu”, dos diálogos e do distanciamento, quando a entonação é amainada para fixar as trocas paralelas (e os olhares cúmplices) com o público.
Boa parte das criaturas apresentam feições carregadas, deformadas por meio de próteses que avolumam o nariz, o queijo, as orelhas, as sobrancelhas. Sensibilidades físicas aguçadas em contraste com formas nada sutis de violências explícitas, subliminares, endógenas.
A expressão deformada e os traços grotescos demandam atores conscientes de que a sutileza pode constituir bem-vinda estratégia para não se deixar engolir pela opacidade. Se o gesto excede, um abraço. A movimentação conjunta flui com senso de entrosamento até na contrarregragem, refletindo o trabalho continuado de boa parte da equipe em anos recentes. Por outro lado, algumas atuações destilam sabedoria nas dimensões fantásticas e sombrias dessas histórias deflagradas por doença, crime, solidão, desmemória, abuso, abandono, amor e paixão, entre outras manifestações sintomáticas ao moinho dos tempos. Como nas elaborações peculiares de Fernanda D’Umbra e Maria Tuca Fanchin, as gêmeas e antípodas Sonata e Melodia. De Eduardo Chagas, o ambíguo caseiro Uilso. E de Helena Ignez, a cicerone Delírio, uma carpideira às avessas, zen. Exemplos de como dosar à perfeição (sabidamente inalcançável) as marcas da alma e da carne que tornaram tangíveis por meio da arte.
.:. Leia as críticas de Ferdinando Martins e Gabriela Mellão a partir de Pessoas sublimes.
Serviço:
Pessoas sublimes
Onde: Espaço dos Satyros Um (Praça Franklin Roosevelt, 214, Consolação, tel. 3258-6345)
Quando: Sexta e sábado, às 21h. Até 7/5
Quanto: R$ 20 e R$ 5 (moradores da Praça Roosevelt)
Duração: 110 minutos
Classificação: Livre
Ficha técnica:
Autores: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Encenação: Rodolfo García Vázquez
Assistente de direção: Marjorie Serrano
Com: Bel Friósi, Eduardo Chagas, Fábio Penna, Felipe Moretti, Fernanda D’Umbra, Gustavo Ferreira, Helena Ignez, Henrique Mello, Ivam Cabral, Luiza Gottschalk, Maria Tuca Fanchin, Phedra de Córdoba e Sabrina Denobile
Cenários: Marcelo Maffei
Figurinos: Bia Pieratti e Carol Reissman
Iluminação: Rodolfo García Vázquez e Flávio Duarte
Trilha sonora: Henrique Mello
Próteses: Eduardo Chagas
Perucas: Lenin Cattai
Dramaturgismo: Guilherme Dearo e Nina Nóbile
Fotografias: Andre Stefano
Divulgação: Diego Ribeiro
Coordenação de produção: Daniela Machado
Produção Executiva: Sílvio Eduardo
Administração: Israel Silva
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.