Artigo
9.5.2016 | por Dirce Waltrick do Amarante
Foto de capa: Reprodução
A lista de escritores e artistas cubanos reconhecidos internacionalmente por seus trabalhos é grande e contempla desde escritores como José Lezama Lima, Guillermo Cabrera Infante e Severo Sarduy a perfomers ousadas como Ana Mendieta e Tania Bruguera. Com a retomada das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, imagina-se que outros artistas de grande importância, mas que foram de certa forma obscurecidos pelo regime castrista, virão à tona.
Esse, parece-me, será o caso do romancista, dramaturgo e poeta Virgilio Piñera (1912 -1979), um dos escritores mais originais de Cuba, segundo a opinião da crítica, que teria se antecipado, no teatro, ao absurdo de Eugène Ionesco e de Samuel Beckett e, na visão de mundo, ao existencialismo de Jean-Paul Sartre. Apesar de sua importância no cenário literário e dramatúrgico, no Brasil, segundo sei, apenas um livro seu foi publicado, Contos frios. A editora Iluminuras já divulgou que irá reeditar em breve o livro, publicado em primeira edição em 1989.
O tema central de sua obra, bastante coerente e marcada por uma regularidade de motivos literários, é o da vida encarada como uma sucessão de golpes terríveis que leva o ser humano a uma existência de miséria e de dor
A propósito de sua possível ligação com essas correntes europeias, Piñera afirmava não se considerar de todo existencialista nem de todo absurdista: “Digo isso porque escrevi Electra [Electra Garrigó] antes que As moscas, de Sartre, aparecesse em livro, e escrevi Alarme falso antes que Ionesco publicasse e encenasse a sua A cantora careca”. Segundo o escritor cubano, todas essas tendências literárias estavam no ar e “[…] mesmo que eu vivesse em uma ilha desligada do continente cultural, ainda assim era filho de minha época, a quem os problemas da tal época não podiam passar despercebidos”. Além disso, para Piñera, Cuba, antes da revolução, era “existencialista por falta e absurda por excesso”. E lembra uma anedota que dizia que “Ionesco estava se aproximando das costas cubanas e, só de vê-las, disse: “Aqui, não tenho nada que fazer, esta gente é mais absurda que o meu teatro […]”.
Nesse sentindo, Piñera até podia se considerar um existencialista e um absurdista, “mas à moda cubana”, como fazia questão de frisar.
Virgilio Piñera foi um apoiador e entusiasta do processo revolucionário cubano, tendo inclusive trabalhado no jornal Revolución. Em 1961, contudo, alguns acontecimentos abalaram sua fé no novo governo do país, sob o comando de Fidel Castro. Nesse ano, o escritor foi detido por razões “político-moralizantes” e nunca soube exatamente o porquê dessa detenção nem quem a decretou. Outro fato político dessa época, segundo o estudioso Luis F. González-Cruz, “não só determinou seu futuro, como também o de todos os escritores cubanos. Em suas conhecidas ‘Palavras aos intelectuais’, Castro advertiu aos escritores e artistas: ‘Dentro da Revolução, tudo; contra a Revolução, nada’.” E com essas palavras alijava toda literatura que supostamente se voltasse contra as ideias da Revolução. Depois da fala de Castro e de um silêncio geral, conta-se que Piñera teria se levantado e dito: “Eu tenho medo. Tenho muito medo”.
A partir de 1967, o escritor teve muitas obras censuradas e nos anos seguintes não voltou mais a publicar. Morreu extremamente pobre em 1979.
Piñera dizia que para ele a literatura servia de escudo contra o medo, medo de “perder a vida, o emprego, o ente querido ou a sorte, se a tiver”. E concluía: “Meu medo é meu próprio ser e nenhuma revolução, nenhum golpe de sorte adversa poderia derrubá-lo”.
O tema central de sua obra, bastante coerente e marcada por uma regularidade de motivos literários, é o da vida encarada como uma sucessão de golpes terríveis que leva o ser humano a uma existência de miséria e de dor. Convém lembrar que o humor negro está quase sempre presente em seus escritos e cria certo distanciamento próprio dos textos absurdos.
Apesar de ter sido admirado e lido por grandes escritores, como o argentino Jorge Luis Borges, depois da revolução Piñera sofreu com o seu isolamento em Cuba e com a hostilização do regime castrista. O escritor passou os últimos anos no ostracismo, e com um medo a mais: o de estar sendo vigiado vinte e quatro horas por dia pelo governo.
O resgate póstumo de sua obra tem sido lento e trabalhoso. Há que se lembrar ainda de que parte de seus escritos inéditos teve destino incerto. Logo após a sua morte, 36 anos atrás, autoridades cubanas entraram em seu apartamento e especula-se que textos inéditos poderiam ter sido apreendidos e jamais publicados.
Em 1986 foi publicada, pela primeira vez, a peça Uma caixa de sapatos vazia (Una caja de zapatos vacía), na qual Piñera parece refletir sobre os procedimentos de investigação do regime castrista. O texto é dividido em dois atos, que falam sobre tortura, interrogação e imolação.
No primeiro ato, Carlos, o protagonista, tortura uma indefesa caixa de sapatos vazia, colocando nela a culpa de todos os seus contragostos. Ele a tortura, porque sabe que se trata de uma caixa indefesa. Aliás, a caixa de sapatos é para o torturador tão só “um instrumento. Nosso instrumento”, que serve apenas para revelar e destacar o seu poder.
Se no primeiro ato Carlos é o torturador, o chefe e o algoz, no segundo ato ele próprio é torturado, ameaçado e agredido por uma personagem com mais poder. Essa nova personagem, Angelito, tortura Carlos até a morte e recebe apoio do coro, que repete as palavras e as ordens do torturador.
O grande tema da peça de Piñera é, portanto, o jogo de crueldade e de terror numa sociedade tiranizada sempre pelo “mais forte”.
Uma caixa de sapatos vazia deve ter sido escrita no final dos anos 1960 (não se sabe a data certa). A peça refletia, parece-me, o desapontamento de Piñera com o regime de Fidel Castro e o medo de ser torturado ou preso mais uma vez por escrever, dizer ou se comportar contra os princípios do regime.
Diria que a caixa de sapatos vazia simbolizaria na peça de Piñera boa parte da população cubana que, sem um pensamento próprio nem uma reflexão sobre os acontecimentos políticos, vivia à margem, na iminência de ser chutada, maltratada, torturada e obrigada a sempre dizer ou revelar algo que nem sabe o que é, já que é, como a caixa se sapatos, vazia… vazia de reflexões.
Lemos na peça um fragmento que pode dar a dimensão da relação de poder que o texto traz à tona. Carlos diz para Berta:
Carlos: Como Sumo Sacerdote te ordeno.
Berta: (se inclina cerimoniosamente). As ordens não se discutem. (Se coloca em posição). Lá vai! (Chuta a caixa de sapatos em direção ao fundo do cenário). Gol!
Carlos: (Sem se mover). Agora brinca com ela.
Berta: Gostas de abusar, hein? Digo que me peça perdão?
Carlos: (Imperativo.) Deixa de cretinices. Quando é que ouviste que uma caixa pede perdão? (Pausa.) Ela não tem nada a ver com isso. É tão só um instrumento. Nosso instrumento.
É interessante pensar que a obra de Piñera é muitas vezes comparada à de Kafka, ao mundo do pesadelo kafkiano, no qual os acontecimentos são sempre destituídos de lógica. Talvez não seja por acaso que, no segundo ato, a personagem Berta pense em se transformar numa barata. Diz Berta: “E eu me torno o quê? Em que me transformo? Numa barata?”.
É Humberto Piñera, irmão de Virgilio Piñera, exilado na Flórida, quem ajudou a divulgar a obra do irmão. Ainda se aguarda que muito mais textos inéditos de Piñera venham a ser revelados.
.:. Edição ampliada de artigo publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C3, em 28/3/2015.
Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.