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Artigo

A marca d’água da arte

Acerca de 'Reset Brasil', criação do Coletivo Estopô Balaio (SP)

21.3.2025  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Mylena Sousa

A zona leste de São Paulo são muitas, e atualmente abrange doze subprefeituras. Os territórios da Penha e de São Miguel Paulista, por exemplo, são ao mesmo tempo bairro e distrito. A Penha fica mais próxima do centro expandido da cidade. São Miguel, no limite da periferia urbana. Uma visita à memória da sociedade na década de 1970 permitiria constatar facilmente que essa noção de tempo e espaço era mais dilatada considerando-se a perspectiva do marco zero na Praça da Sé. Ao longo dos anos, o transbordamento geográfico avançou glebas adiante em direção a áreas rurais que viriam a conformar no mapa o também bairro e distrito Cidade Tiradentes.

Pois a ponte Penha-São Miguel nestas linhas se dá como exercício de aproximação à experiência do Teatro Núcleo Independente (1969-1979), grupo nascido no âmbito do Teatro de Arena e que chegou a manter uma sede e centro cultural na Penha. A conexão ocorre ainda como alavanca para mergulhar na criação mais recente do Coletivo Estopô Balaio, Reset Brasil (2023)[1], que embarca com espectadores em vagão de trem metropolitano, a partir da estação do Brás, desce na plataforma da estação de São Miguel, pisa o chão de terra batida e o asfalto de ruas e vielas do Jardim Lapenna e desemboca na Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, a popular Praça do Forró, onde fica a única construção original do período jesuíta no município, a Capela de São Miguel Arcanjo, mais conhecida como Capela dos Índios (ou dos Indígenas, termo mais propício), construída em 1560 para fins de catequização ungida pelo padre espanhol José de Anchieta, uma edificação rudimentar depois desmanchada para dar lugar a outra, em 1622, sempre por meio da exploração da mão de obra indígena de povos historicamente massacrados.

Leia artigo originalmente publicado na revista ‘A[l]berto’ a propósito do trabalho mais recente do Coletivo Estopô Balaio, ‘Reset Brasil’ (2023), que participa sábado (23) e domingo (24º) do eixo MITbr – Plataforma Brasil na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, com ingressos esgotados

A extensão do parágrafo denota o fôlego gerado pela experiência. Em 1977, portanto há 46 anos, a crítica Mariangela Alves de Lima publicou no jornal O Estado de S. Paulo a sua leitura do espetáculo Os imigrantes, criação coletiva do Teatro Núcleo Independente. O título, um tanto cifrado, dizia: Operariado fornece o tema para a peça. A autora pontuou a relevância de se acompanhar uma produção artística erguida na zona leste e de natureza distinta daquela de padrão mais empresarial nos modos de produzir e criar, então concentrada em endereços do bairro da Bela Vista, ou Bixiga, na região central.

Lima saudou a iniciativa do grupo formado a partir de um curso de interpretação no Arena, jovens atores que de pois trabalharam em parceria com o Theatro São Pedro, na Barra Funda, zona oeste (um dos palcos de resistência à dita dura civil-militar no tempo em que Arena e Oficina estavam acuados ou no exílio), bem como chegaram a ter uma base no Bixiga antes de alugarem, desde 1976, um galpão de cerca de 450 metros quadrados na antiga Estrada de São Miguel, na Vila Esperança, região da Penha. Foi lá que a crítica assistiu à peça. Em seu texto, ela ressaltava como a “manutenção de um trabalho ininterrupto durante sete anos permite avaliar no tempo o que esses grupos podem realizar ao nível da inovação cênica e da procura de um novo público”.

Antes de circunscrever a recepção à montagem, a autora situou o esforço “quase heroico” de grupos afins na busca por se organizarem “em torno de um projeto estético e ideológico” justamente àquela altura do regime militar que se estenderia até 1985. “Quase sempre a proposta é uma ação cultural que ultrapassa a realização do espetáculo. O teatro deve funcionar como um fermento, despertando a atividade cultural latente no público do bairro”, afirmou. Os desafios incluíam “encontrar a linguagem comum entre o ator e o público, que nem ao menos ouviu falar de teatro”[2].

Os apontamentos de Lima tatearam alguns dos procedimentos que o Núcleo e decerto outros pares adotaram em bairros descentralizados e desassistidos de saneamento básico, que dirá de equipamento cultural. Este artigo não ambiciona historiar a correlação do teatro de grupo presente em comunidades com o perfil das camadas da população socialmente desfavorecidas em razão de desigualdades econômicas. O engajamento político de agrupamentos artísticos foi radiografado por Silvana Garcia em seu estudo sobre modos de produção e processos criativos na década de 1970. A pesquisadora apurou que havia empenho em “buscar o público no seu hábitat” uma vez que a “tônica do movimento dos independentes”, assim então autodeclarados, consistiria em “produzir coletivamente; atuar fora do âmbito profissional; levar o teatro para o público da periferia; produzir um teatro popular; e estabelecer um compromisso de solidariedade com o espectador e sua realidade”[3].

De fato, a condição, pode-se dizer, forasteira do Teatro Núcleo Independente em ousar desbravar a zona leste, entre 1976 e 1979, guarda traços de rupturas, inspirações e dilemas afeitos à trajetória daqueles e daquelas que vieram depois, sejam de origem dos próprios territórios ou neles assentados[4]. Para Ademir de Almeida, na “tarefa de coletivização da arte teatral o Núcleo manteve ao longo de sua existência um impulso inventivo que se materializou em procedimento, métodos e experiências teatrais”[5]. Práticas e esforços plasmados no espetáculo Os imigrantes, de acordo com o artista e pesquisador Ademir de Almeida, integrante da Brava Companhia na zona sul.

A escolha da peça se deu após debates internos sobre os limites encontra dos pelo grupo no relacionamento com algumas organizações comunitárias e a constante dificuldade de tratar de temas políticos de maneira mais extensiva nestes locais. Em suas experiências após as apresentações, o Núcleo propunha durante debates com os espectadores o questionamento da ordem política ditatorial vigente e a articulação dos trabalhadores em prol dos seus próprios interesses, visando à transformação da realidade de miséria e exclusão vivida pela maioria dos brasileiros.[6]

Na concepção de Mariangela Alves de Lima, a dramaturgia visava informar aos espectadores “sobre a origem e o modo de vida da sua própria classe. Sem grandes pretensões, dramatizando a vida de um casal de imigrantes italianos, conta-se a história pelo lado mais omitido: os que fracassaram na perseguição da fortuna”. Assim, estimulado pelo texto escrito coletivamente, “o público deve também envolver-se com a trajetória pessoal das personagens. Há em cena dois jovens camponeses cuja única aspiração é de manter-se dentro dos padrões mais conhecidos de uma vida familiar digna”, analisou. “É difícil avaliar a resposta que o público da periferia da cidade dá a esse tipo de trabalho. Mas, ainda que desconhecendo a chave cifrada do diálogo, o Núcleo está definindo uma linguagem através da experiência. O teatro de todas as áreas da cidade tem muito a ganhar com isso”[7].

Natália Tupi Parte do elenco do Coletivo Estopô Balaio em ‘Reset Brasil’, que embarca espectadores em trem metropolitano, pisa o chão e o asfalto de ruas e vielas de bairro na zona leste de São Paulo e culmina na Praça do Forró, onde fica a única construção original do período jesuíta no município, construída em 1560 e depois desmanchada para dar lugar a outra, em 1622, sempre por meio da exploração da mão de obra indígena

É da hibridação textual dessas épocas que salta aos olhos a maturidade do projeto artístico, sociocultural e filosófico do Estopô Balaio em doze anos de trabalho continuado desde sua sede, no Jardim Romano, na zona leste, e estendido a outras macrorregiões da capital ou da Grande São Paulo sem vaticinar indícios de megalomania, posto que a inerência lhe é senhora. As quatro horas do fluxo de Reset Brasil em itinerância por diferentes localidades, suportes e gradações materiais, humanas e poéticas confirmam o vínculo com moradores e a inexorabilidade de falar ao mundo a partir de suas realidades e vivências as mais radicais.

Se o coletivo surgiu em 2011 com ganas de elaborar simbolicamente (mas não só) os enfrentamentos de moradores e as sequelas de pelo menos três meses de alagamento, com ruas cobertas por mais de metro d’água, após as enchentes ocorridas no Romano e adjacências entre 2009 e 2010, o pensamento e a arte que singram na cena em 2023 configuram pilares biográficos de sujeito, território, país e planeta.

Quando Lima comentou que a ação cultural ia além do trabalho artístico em Os imigrantes, em Reset Brasil tal atitude transubstancia-se em ação sociocultural alicerçada no incentivo à consciência política e cidadã de direitos e participações de quem vive nas chamadas quebradas do bairro-dormitório e trabalha no centro.

Na acepção de Teixeira Coelho para ação cultural,

[…] o agente apenas daria início a um processo cujo fim ele não prevê e não controla, numa prática cujas etapas também não lhe são muito claras no momento da partida. Nada de autoritarismo, nada de dirigismo, nada de paternalismos. Na anotação de Francis Jeanson, intérprete e biógrafo de Sartre, além de diretor de uma casa de cultura no interior da França nos anos 60, um processo de ação cultural resume-se na criação ou organização das condições necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem assim sujeitos – sujeitos da cultura, não seus objetos. Seria o ideal.[8]

O Coletivo Estopô Balaio dá a ver essas premissas de maneira notável. Nessa espécie de dispositivo expedicionário, o programa – numa hipotética inclinação à performance – é cumprido com planejamento e margem de negociação para imprevistos como o atraso de minutos na saída do trem que liga as estações Brás, na região central, e Calmon Viana, no bairro de mesmo nome na cidade de Poá.

Espectadores que agendaram a sessão recebem orientações prévias em seus e-mails, como a do ponto de encontro: “Estação Brás – Plataforma 6/7 da CPTM – linha 12 Safira (nossa equipe irá recebê-los na própria plataforma, procure pelo banner do espetáculo)”. E as recomendação de “levar um documento de identificação com foto” e “vá com sapato confortável, leve água”[9]. Coordenadas simples e diretas, mas que poderiam impressionar quem desconhecesse a movimentação intensa do local mesmo nas tardes de sábado.

Vista da estrutura elevada de acesso ao metrô, a plataforma apinhada desalentava a missão de localizar o banner. Mas bastou meter-se entre usuárias e usuários e lá estava a mesa da equipe que recolhe documentos e fornece o equipamento sonoro individual usado durante a primeira etapa de deslocamento, no interior de um vagão do trans porte em tempo real. Vinte e dois quilômetros sobre trilhos e outros dois quilômetros a pé, com devidos intervalos para lanchar ou alongar partes do corpo, estratégias incorporadas como dramaturgia.

Em sua maioria de ascendência indígena, atuantes vestidos em figurinos que parecem feitos de algodão cru, cores terrosas, com linhas pretas ou vermelhas traçadas no rosto, movimentam-se lentamente expressando gestualidades mínimas e olhares incisivos, por entre usuários e espectadores postados em pé ou sentados em bancos. Quem embarcou para o espetáculo estava sintonizado via transmissor de rádio. Era como se a escuta promovesse uma suspensão espaçotemporal do entorno, desbastando os ruídos visuais e sonoros, inclusive da paisagem movente nas janelas, para remeter ouvintes a outra irrealidade cotidiana por meio da fabulação crítica[10] de discursos que promoveram o apagamento dos saberes, práticas e pensares dos povos originários e dos povos escravizados que vieram de África trazidos à força.

O percurso de cerca de meia hora é pontuado pela “rádio trem”, como denomina a locução, enunciando simbologias e cosmogonias que dizem respeito a identidades de etnias, a ancestralidades, inclusive em língua indígena. Como ao mencionar o ir e vir de cobras, uma de cor vermelha e outra preta, passível de analogia com o trem de aço que serpenteia entre as estações. A voz condutora pede que a tomem por colírio, já que os “sentidos foram sumindo”. “Será que olho escuta?”, pergunta. O tempo ganha outras espessuras com as sutilezas de miradas, meneios de cabeça e tronco rente a passageiras e passageiros, ao ritmo do próprio deslizar do transporte coletivo.

Cassandra Mello Atuantes do Coletivo Estopô Balaio durante ensaio no vagão de trem da linha 12 – Safira da CPTM; criação dirigida por Ana Carolina Marinho e com dramaturgia de Juão Nyn

Um tempo que já não é linear, quantitativo, mas ontológico. “A criança será ancestral do adulto que se tornará”, condensa a mesma voz, conclamando a um renascimento étnico entre África e Abya Yala, a Terra Madura na língua do povo Kuna e sinônimo de América[11].

Na estação de São Miguel Paulista, o público é recepcionado por um coro infantojuvenil em canto, coreografia e adereços do universo indígena. Dali por diante, as crianças somam-se aos atuantes do vagão e a outras pessoas, moradores, não necessariamente artistas, que aderiram ao projeto sociocultural e assertivamente artístico. Guiados por esse grupo de vinte protagonistas em distintas frentes, espectadores como que tomamos parte de uma procissão profana em deriva por outras paragens do Jardim Lapenna, bairro situado entre a estação e o antigo leito do rio Tietê. Apesar da histórica mobilização de moradores por equipamentos públicos nas áreas de saúde e educação, a condição de várzea fez com que o Lapenna sofresse graves problemas habitacionais, sociais, ambientais e urbanísticos, como falta de coleta de esgoto, acesso à água tratada e aumento da incidência de alagamentos[12]. Retrato comum a muitas periferias da cidade mais populosa da América do Sul, com 11,4 milhões de habitantes[13].

Dali por diante, a “caminhação”, um dos neologismos que brotam da dramaturgia de Juão Nyn, valência feita de “palavra-pé e plantação”, vai sedimentar o “contrafeitiço” das artes da cena e do corpo para abrir um portal na travessia do território e da própria historiografia de São Paulo. O mote vem de uma visão imaginária, inventiva e subversiva para um outro 9 de julho: não aquele do calendário oficial da Revolução Constitucionalista de 1932, feriado estadual, mas o do Cerco de Piratininga, de 1562. Piratininga ficava no alto de uma colina entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú. Trata-se de conflito de dois dias entre indígenas cooptados por colonizadores jesuítas estabelecidos no recém-criado colégio Vila de São Paulo de Piratinga e guaianás, tamoios, carijós, tupinambás e tupiniquins que viviam no entorno de Ururay, aldeamento que em breve compreenderia bairros de São Miguel Paulista, Jardim Romano e Itaim Paulista, bem como a cidade de Guarulhos, entre outras localidades.

Reset Brasil fabula a narrativa oficial. O movimento dos indígenas revoltosos (perspectiva compartilhada com espectadores) é feito do Brás a São Miguel, enquanto há 461 anos o embate era em sentido contrário: indígenas guaianás, tupinambás e outros partiram de Ururay em ataque orquestrado à igreja de Piratininga, futuro Pátio do Colégio. Sublimaram o ato de resistir, apesar de vencidos, ressignificação que o Estopô Balaio enraíza. O imbróglio histórico envolvendo topografias e laços de sangue rompidos pela quebra de confiança são assinalados em estado de jogo, sem afetação didática. Por exemplo, o explorador português João Ramalho era casado com Bartira, filha do cacique Tibiriçá, cristianizado, defensor dos jesuítas, que por sua vez era irmão do cacique Piqueroby, liderança dos guaianás no levante, como o coletivo assume na encenação a leste da cidade. Nomes que hoje correspondem a ruas cuja maioria dos moradores não se dá conta das pelejas, como na região de Perdizes, zona oeste.

A dramaturgia de Nyn, que é potyguara e uma das cinco pessoas do núcleo artístico que têm origem indígena, a direção de Ana Carolina Marinho, cofundadora do grupo, ambos nascidos no Rio Grande do Norte, portanto migrantes, e a entrega e colaboração empenhadas da equipe fazem dessa experiência criativa de combate à colonialidade com ancestralidade um capítulo digno de irradiação do libelo da estadunidense Saidiya Hartman à fabulação crítica segundo a revisitação que fez à saga da escravizada sul-africana Sara Baartman (1789-1815), cujo corpo e condição humana foram explorados de forma racista e sexista na Europa do século XIX. Vale a pena atentar à sofisticação argumentativa que desassombra ao conferir espelhamento às peripécias do Estopô Balaio:

Jogando com os elementos básicos da história e rearranjando-os, reapresentando a sequência de eventos em histórias divergentes e de pontos de vista em disputa, eu tentei comprometer o status do evento, deslocar o relato preestabelecido ou autorizado e imaginar o que poderia ter acontecido ou poderia ter sido dito ou poderia ter sido feito. Lançando em crise “o que aconteceu quando” e explorando a “transparência das fontes” como ficções da História, eu queria tornar visível a produção de vidas descartáveis (no tráfico atlântico de escravos e também na disciplina da História), descrever “a resistência do objeto”, mesmo que por apenas imaginá-lo primeiro, e escutar os murmúrios e profanações e gritos da mercadoria. Aplainando os níveis do discurso narrativo e confundindo narradora e falantes, eu esperava iluminar o caráter contestado da História, narrativa, evento e fato, derrubar a hierarquia do discurso e submergir a fala autorizada no choque de vozes. O resultado desse método é uma “narrativa recombinante”, que “enlaça os fios” de relatos incomensuráveis e que tece presente, passado e futuro, recontando a história da garota e narrando o tempo da escravidão como o nosso presente.[14]

No xadrez cênico em análise, os tabuleiros fixos e em trânsito dão conta das capturas, catequizações e aliciamentos que continuam sendo praticados na sociedade brasileira marcada pela iniquidade. Ao “confabularmos o contra-ataque”, “somos a revolução vinda do chão”, como informam as vozes de atuantes durante os caminhos dessa arte em mutirão, para emprestar a prática de vizinhança e auxílio mútuo de origem rural que também migrou para as periferias paulistanas entre as décadas de 1950 e 1980 em prol da construção, ampliação e melhoramento de residências de trabalhadores nos rincões.

No trançar de acontecimentos de antes e de agora, a moradora Márcia, uma das lideranças do Movimento Mães de Maio da Leste, diz que “O Estado dá aval para os policiais matarem nossos filhos”. O seu, Peterson, foi assassinado no meio de uma tarde de 2015 após abordagem de quatro oficiais da chamada força tática. Dores como essa contracenam com epifanias da vida ordinária, vide o convite de uma atriz para “você a reflorestar essa rua comigo” ou a pausa para desfrutar de açaí na barraca de Olga, numa praça, comerciante criada em roça na região de Ipiaú, no sudeste baiano, que teve 26 irmãos e conta da bisavó “laçada no mato” para casar na adolescência.

Natália Tupi Passagem do espetáculo itinerante em que a moradora do Jardim Lapenna, Márcia, integrante do Movimento Mães de Maio da Leste, comenta sobre a violência de Estado sistêmica que assassinou seu filho, Peterson, em 2015

Reset Brasil se quer e se efetiva um espetáculo feito de “sonhos e falas”, inquieto na busca por reconhecer e recontar. Sob a voz de comando “sigam a cena”, artistas lançam flechas no roteiro como aquelas destinadas à memória, à ressignificação, à proteção e à sabedoria. São trilhas. E ainda dão brechas para a autocrítica a propósito de “por que usar uma palavra inglesa numa peça que fala sobre a guerra nativa?”. Alguns achados para a adoção do anglicismo vão aparecer cenas adiante, como o seguinte: “Resetar é tipo sabe a água com gás que vem num café expresso em São Paulo? Sabe pra que funciona? Resetar o paladar: as pupilas gustativas ficam loucas com cada pontinha caindo e deixam que novos sabores façam parte do nosso ser”.

Na contramão das monoculturas, o coletivo acolhe e infunde a pluralidade comunitária como no passinho da família Alves ou na roda de samba, em pleno meio da rua, mesclando novas e tradicionais formas da cultura de luta. É também uma peça sobre território, autodeterminação, demarcação, contracolonização. Afinal, na voz de mais uma atriz: “A fronteira quem inventou foi o poder, o Estado e depois o mercado. Nunca pediram licença”.

Quando a noite vem e o olhar de espectadoras e espectadores se espicha pela paisagem noturna pontilhada de luzinhas de moradias, logo após percorrer a passarela sobre os trilhos de trem, e sob cantos, batuques e maracás, a pergunta lançada por uma atriz tupinambá gera o devido estranhamento: “Já que o Brasil sumiu, vocês são de onde?”. No desfazimento dos “nós dos sentidos”, os pontos de fuga arquitetados permitiram aprofundar realidades tão complexas e dinâmicas, sobre as quais foi colocada uma lupa.

Na chegança à Praça do Forró, a disputa do Cerco de Piratininga é emu- lada com mais ênfase na evolução de corpos, arcos, flechas, espacialidades, sonoridades e visualidades. Despontam simbioses nas projeções em videomapping sobre as copas das árvores, ao som instrumental das composições icônicas Brasileirinho e El condor pasa[15], quem sabe com o intento de evocar saberes ameríndios. Tudo se passa ao lado da Capela dos Indígenas, sopesada com distanciamento pela narrativa, sem tons laudatórios. O mesmo patrimônio histórico e a mesma praça que impulsionaram o Movimento Popular de Arte, o MPA, que enfrentou católicos (a Catedral de São Miguel fica ao lado) e a administração municipal para prover ações artístico-culturais tanto no interior da capela como em seu entorno[16]. Não por acaso, o MPA teve contato com o Teatro Núcleo Independente, no barracão do grupo na Penha, o que reconecta de forma vibrante com o Reset Brasil transversal do Coletivo Estopô Balaio. É “nessa guerra festejada, nessa festa guerreada”, como declara a diretora após o desfecho, que arte, cultura e política se imbricam em poéticas duras e de encantamentos.

.*. Artigo originalmente publicado na A[l]berto, revista da SP Escola de Teatro (n. 9, 2024), sob o título A marca d’água da arte em ação sociocultural, a convite da coordenadora editorial Silvana Garcia.


[1] A temporada de estreia de Reset Brasil aconteceu entre 11 de março e 7 de maio de 2023, com sessões aos sábados e domingos, às 15h. Recomendava-se ao público chegar trinta minutos antes para retirar equipamento sonoro e partir da plataforma da linha 12-Safira na estação Brás da Companhia Metropolitana de Trens Urbanos, a CPTM, numa jornada estimada em quatro horas, envolvendo caminhadas e paradas em direção ao destino final: a Praça do Forró, em São Miguel Paulista. Para a ficha técnica do espetáculo e mais informações sobre o grupo, acessar a página do coletivo: https://coletivoestopobalaio.com.br/.

[2] Mariangela Alves de Lima, Operariado fornece o tema para a peça, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 out. 1977, p. 10.

[3] Silvana Garcia, Teatro da militância. A intenção do popular no engajamento político, Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, livro eletrônico, 2022, pp. 206-207.

[4] A exemplo das jornadas do Engenho Teatral (Carrão), Pombas Urbanas (Cidade Tiradentes), Buraco de Oráculo (São Miguel Paulista), Grupo XIX de Teatro (Vila Maria Zélia), Dolores Boca Aberta (Cidade Patriarca), Cia. Estável de Teatro (Cangaíba) e outros agrupamentos.

[5] Ademir de Almeida, A cena ativista do Tetro Núcleo Independente durante a década de 1970, dissertação, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2021, p. 11.

[6] Ibidem, p. 86.

[7] Mariangela Alves de Lima, obra citada, p. 10.

[8] Teixeira Coelho, O que é ação cultural, São Paulo: Editora Brasiliense, 2001, p. 14.

[9] Mensagem recebida por e-mail da produção do Coletivo Estopô Balaio na manhã de 29 de abril de 2023, sábado, dia da sessão.

[10] Fábula crítica é como a pesquisadora estadunidense Saidiya Hartman nomeou o método que criou para guiá-la em seu “esforço contra os limites do arquivo para escrever uma História cultural do cativeiro e, ao mesmo tempo, uma encenação da impossibilidade de representar as vidas dos cativos e cativas precisamente por meio do processo de narração”. O procedimento foi detalhado no artigo “Vênus em dois anos”, publicado originalmente na revista Small Axe, da Duke University (vol. 12, no. 2, 2008, pp. 1-14), acerca da escravizada sul-africana Sara Baartman (1789-1815), conhecida como Vênus, violentada e explorada como uma atração de circo na Europa do início do século XIX, exposição repleta de lacunas e silêncios, mas carregada de sentido na leitura de Hartman. Tradução de Fernanda Silva e Sousa para a revista Eco-Pós, da UFRJ (vol. 23, no. 3, 2020, p. 28).

[11] Abya Yala, in Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe, São Paulo: Boitempo Editorial/Laboratório de Políticas Públicas – UERJ, 2006. Disponível em: https://latinoamericana.wiki.br/es/entradas/a/abya-yala, acesso em: 24 set. 2023. Na língua do povo Kuna, Abya Yala significa “Terra Madura”, “Terra Viva” ou “Terra em Florescimento” e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada, no norte da Colômbia, e vive atualmente na costa caribenha do Panamá.

[12] Plano de Bairro Jardim Lapenna: a rota para um território de direitos. Disponível em: https://fundacaotidesetubal.org.br/midia/publicacao_2979.pdf, acesso em: 28 ago. 2023.

[13] Dado do Censo 2022 IBGE. Disponível em: https://abre.ai/gHi3, acesso em: 28 ago. 2023.

[14] Saidiya Hartman, Vênus em dois anos, trad. Fernanda Silva e Sousa, Revista Eco-Pós, UFRJ, Rio de Janeiro, vol. 23, no. 3, 2020, p. 29.

[15] Brasileirinho (1947), do carioca Waldir Azevedo; El condor pasa (1913), dos peruanos Daniel Alomia Robles e Julio de La Paz, pseudônimo de Julio Baudouin.

[16] Ademir de Almeida, obra citada, p. 83.

Reset Brasil

Ficha técnica

Direção: Ana Carolina Marinho

Dramaturgia: Juão Nyn

Direção de movimento e preparação corporal: Rodrigo Silbat

Diretora assistente: Maíra Azevedo

Direção de elenco infantojuvenil: Carol Piñeiro

Direção musical, edição e mixagem “Trem-Ato”: Rodrigo Caçapa

Direção de arte: Mara Carvalho e Juão Nyn.

Elenco: Dandara Azevedo, Dunstin Farias, Jaqueline Alves, Jefferson Silvério, Jéssica Marcele, Keli Andrade, Laís Farias e Silvana Farias. Elenco infantojuvenil: Anny Beatriz, Anny Victoria, Eduarda França, Eduarda dos Santos, Gabriely Vitória, Gi Godoy, Julya Pereira, Kim Andrade, Lua Brites, Pedro Henrique, Ryan Peixoto e Suemy Dagmar

Percussionistas: Josué Bob e Thiago Babalotim

Flautista: Giovani Facchini

Operação de som: Jomo Faustino, Devão Sousa e Emerson Oliveira

Efeitos [arte Laser]: Diogo Terra

Artistas visuais [Artes Muros]: Felipe Urso, Morales, Ricardo Cadol, Ana Kia, Rote, Vini Meio, Ignoto, Auá Mendes e Ju Costa

Participações especiais: Socorro, Márcia Gazza, Olga, Ângela Alves, Fernando Alves, Didão e Page Rubens

Cenotécnico: Enrique Casa

Figurinos: Mara Carvalho

Adereços: Aline Dayse

Costureira: Pamela Rosa

Artes gráficas: Daniel Torres

Contrarregras: Lisa Ferreira, Rodrigo Vieira e Wesley Carrasco

Assessoria de imprensa: Nossa Senhora da Pauta

Assessoria Jurídica: Paulo Rogerio Novaes e Aline Dias de Andrade

Secretaria: Lisa Ferreira

Mídias sociais: Gabriel Carneiro

Fotografia e câmera: Cassandra Mello

Produção e direção de produção: Wemerson Nunes [Wn Produções]

Realização: Coletivo Estopô Balaio e Cooperativa Paulista de Teatro.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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