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Crítica Militante

Homem-caranguejo, mito e anti-herói

28.6.2016  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: João Julio Mello

No texto de apresentação ao livro Caranguejo overdrive, de Pedro Kosovski – recém-lançado pela editora Cobogó –, o diretor Marco André Nunes se lembra de um dos momentos mais simbólicos do processo de construção da premiada montagem que celebrou 15 anos de Aquela Cia. de Teatro (RJ), em 2015:

Durante esse quase um ano de Caranguejo overdrive, tivemos que aprender a cuidar dos bichos. Enquanto ainda aprendíamos a lidar com eles, alguns morreram. Trocamos a alimentação, e o trato se tornava mais delicado e habilidoso, mas, ainda assim, continuavam insistindo em morrer. Acontece que usávamos apenas um caranguejo de cada vez, e segundo uma pesquisa feita por Felipe Marques [ator do grupo], caranguejos não podem ficar sozinhos. A solidão torna caranguejo letárgico e inativo, paralisando-o e levando-o à morte. Caranguejos precisam de outros caranguejos. Para brigarem. Para que se mexam. A vida do caranguejo depende da existência da ameaça, do conflito (p. 9).

A carga de símbolos presente nesse exemplo de Nunes dialoga diretamente com as entrelinhas e figuras de linguagens vistas em toda a obra de Kosovski. Vencedora, entre outros prêmios, do Shell RJ de melhor espetáculo, a peça carioca é uma das mais relevantes e incisivas reflexões contemporâneas no tangente aos fenômenos sociais e econômicos do Brasil transpostos à cena com poesia, musicalidade, humor e crítica.

A história é centrada em Cosme, um soldado que luta na Guerra do Paraguai (1864-1870) e depois regressa ao Brasil. De volta ao Rio de Janeiro, sua terra natal, esse homem não se reconhece como parte de uma cidade descontruída pela modernização, nem reconhece o lugar que deixou para trás anos antes.

“Hoje, nesse mangue aterrado, no coração da Cidade Nova em choque [grita], sou eletrocutado vivo, estou de cabelo em pé, pele queimada e pau duro pronto para me meter nos modismos transantes de eletricidade – é irresistível! –, pois toda cidade, vocês sabem, constrói seus monstros para divertir a nossa vida besta”, diz o personagem.

Encenação do texto de Pedro KosovskiJoão Julio Mello

Encenação do texto de Pedro Kosovski

Pedro Kosovski e Aquela Cia. de Teatro tomaram como impulsos a obra sociológica de Josué de Castro (Homens e caranguejos, 1967) e a música antropofágica do manguebeat (a revolução sonora liderada por Chico Science). Ambos pernambucanos, Castro e Science lançaram olhar cirúrgico e poético sobre as mazelas do Recife, a cidade às margens do rio, dando voz aos odores e às dores daquelas pessoas aterradas pelo desenvolvimento.

Da mesma gênese que uniu “mangue” e “beat” no neologismo síntese do movimento artístico brasileiro da década de 1990, o título do texto de Pedro Kosovski justapõe o crustáceo decápode e a expressão sinônima de sobrecarga e estafa para ratificar a repetição dos desajustes independente do tempo. O Rio de Cosme (o anterior e o posterior à guerra) é atemporal, subverte a medida dos anos e do espaço; é também o contemporâneo.

A leitura de Caranguejo overdrive proporciona a expansão de ideias, percepções e interpretações (a textual e a cênica, óbvio) sobre o dito, o escrito e o ilustrado pela criação. Formalmente, o texto nos leva a muitas construções. Despreocupado com apontamentos herméticos, é no fluxo da linguagem que Kosovski nos conduz por sua caminhada. O itinerário em que predominam vírgulas e se economizam pontos ilumina o leitor para sensações que partem de uma voz individual (a do protagonista) e se amplificam no coletivo. A liberdade visível nesse texto dramatúrgico faz do livro uma nova obra, para além da montagem do ano passado.

Esse mangue faz juntar o Rio ao Recife dos tempos atuais. Cidades transpassadas por processos de gentrificação que carregam e expulsam os que estão à margem dos seus lugares de origem

A peça é fragmentada em 11 quadros, em camadas que pontuam questões históricas e sociais. O fato de não localizar o leitor geograficamente ratifica essa ideia de amplitude de leitura. Os diálogos não têm pontuadas as indicações precisas de quem fala o quê, apenas introduzem quem dialoga com quem, a exemplo de “OFICIAL DO EXÉRCIO interroga COSME”. Isso nos dá um sentido de pulverização da condição de homem-caranguejo, que vai além de Cosme, mas está numa sociedade.

A conexão que Kosovski estabelece com a musicalidade nos jogos de palavra compõe o texto de poesia e crítica comuns às canções de Chico Science. E essa relação da música com a dramaturgia é algo intrínseco ao repertório de Aquela Cia. de Teatro, como em Ouside (2011) e Edypop (2014).

No sentido filosófico e social, Cosme é um homem-caranguejo que transita pela trama como um anti-herói e, ao mesmo tempo, um mito. Durante a leitura, acompanha-se a metamorfose deste homem, aos poucos guiada no encontro com outros personagens: um historiador, uma cientista, um oficial do exército e uma prostituta. Criaturas que dão conta de, respectivamente, contextualizar historicamente essa narrativa, pôr luz em questões sociais por meio da ciência e reapresentar o Rio de Janeiro a Cosme.

A atriz Carolina Virgüez ganhou o Shell RJ em 2015João Julio Mello

A atriz Carolina Virgüez: Shell RJ em 2015

É justamente neste olhar de reencontro e estranhamento sobre a “nova” cidade que Cosme fermenta seu caráter universal. A mesma modernidade que fez desabar o Rio de Janeiro fala de um Brasil cujas desigualdades são gritantes. O Rio, na época da volta de Cosme, no início dos anos 1870, é a cidade que assiste ao declínio da economia cafeeira e o início de um forte e expansivo processo de industrialização, que vê a olho nu as contradições entre progresso e miséria –miséria semelhante àquela apontada por Josué de Castro no final dos anos 1960 e cantadas por Chico Science três décadas depois: a pobreza e a fome de quem vive à beira do rio cujas águas se misturam com o esgoto e a lama.

Não obstante, esse mangue faz juntar o Rio ao Recife dos tempos atuais. Cidades transpassadas por processos de gentrificação que carregam e expulsam os que estão à margem dos seus lugares de origem. Uma percepção mais além consegue ver nas entrelinhas desse empurrão os moradores da favela do Vidigal, na capital fluminense, que aos poucos foram sendo “retirados” de seus espaços para impulsionar a especulação imobiliária fortalecida pela Copa do Mundo e pelas Olimpíadas; e, na capital de Castro e Science, o Recife, os gritos de socorro do Cais José Estelita, uma das mais marcantes vítimas da modernização de uma cidade, leiloado ilegalmente a empreiteiras e ameaçado de ser demolido para dar espaço a construções luxuosas.

Cosme somos nós que nos espantamos com a cidade devastada, os cais a caírem, os portos de cimento que anunciam a atualidade falida. E, lá pelas tantas, esse personagem, aos poucos enterrado vivo junto com sua cidade do passado, vai tomando força, virando o homem-caranguejo, assim bem profetizado por Josué de Castro. Mas, ao mesmo tempo, “um monstro de lama, um caranguejo com cérebro, como me chamam”, assim lembrado por Pedro Kosovski. Um bicho pronto para se revoltar – unido aos outros muitos que ali também vivem – e disposto a sair do seu buraco para fazer sua revolução: “Quanto mais eu me enfio nas suas ruas, viadutos e pontes, e penetro nos buracos de suas obras abertas, mais expando a ferida da fome na minha barriga, sim, eu sei que sou um problema sem solução.”

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Edição da CobogóReprodoução

Edição da Cobogó

Serviço:
Caranguejo overdrive (58 páginas, R$ 30)
Autor: Pedro Kosovski
Editora: Cobogó (2016)

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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