Crítica Militante
26.7.2016 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: André Maceira
A morte é o traço mais evidente em Mamãe, espetáculo solo de Álamo Facó. Mas não necessariamente o predominante. Ao acercar-se de um episódio de conotação dramática – a perda abrupta da mãe – o ator erige uma obra contaminada por elementos verídicos. A narrativa apresentada dá conta de seu calvário pessoal: apenas cem dias separam o diagnóstico de um câncer cerebral do óbito materno. Não é, contudo, a recriação da experiência (ou mesmo sua transfiguração ficcional) o aspecto mais relevante da proposta.
Do encontro entre o teatral e o performático nasce a qualidade ritualística do que vai à cena. Espécie de ‘cerimônia do adeus’ (recordando aqui o livro em que Simone de Beauvoir retoma a fase final de Jean Paul Sartre), na qual a vivência do luto se amplia. Nesse movimento, a estupefação e a dor da perda não se mostram propriamente como destino, mas ponto de partida. Apenas um primeiro material para a elaboração de uma celebração pela vida que se encerra.
O terrível e o trivial se combinam para compor um quadro de estranha harmonia
Para esquecer, antes, é preciso lembrar. Em suas considerações a respeito do luto e da melancolia, Freud teoriza sobre o processo de elaboração da perda e o fundamento terapêutico da memória. O esforço do simples apagamento é um trabalho de Sísifo. Um recomeçar sem descanso, inevitavelmente fadado ao fracasso. Aquele que assim trabalha, buscando a supressão do vivido, vê-se preso entre os escombros de um desmoronamento que já ocorreu. Antes de se encontrar o silêncio, deve-se dizer do objeto amado e perdido. Como se para desinvestir a libido, fosse necessário recordar o objeto em que ela esteve investida.
Responsável também pela dramaturgia de Mamãe (e por sua codireção, ao lado de César Augusto), Facó se põe a revolver o terremoto que viveu para recompor camadas de lembranças. Há a visita a episódios da biografia de Marpe Facó, intenção de revelar seus relatos, sua dicção. Mas também de supor como teria sido sua luta interna para dar corpo e sentido às ideias que iam se esfacelando conforme a doença avançava. Ao decidir iniciar o espetáculo com um emaranhado de pensamentos aparentemente desimportantes e desconexos, o intérprete/autor insere a plateia no jogo antes mesmo de anunciá-lo. Como se nos fosse dada a chance de vislumbrar a agonia (ou a sua suposição) por dentro. Essa amarração prevê ainda o entrelaçamento das reminiscências do próprio Facó, como filho, como criador, como indivíduo.
Outros artistas já transfiguraram a perda materna em obras. Tantas vezes que se poderia supor tratar-se de um gênero. A aparência de ritual empregada nessa encenação, porém, leva a costurar analogias e parentescos com uma parcela específica dessas criações enlutadas. Em 2010, a francesa Sophie Calle deu prosseguimento aos seus rituais autobiográficos com Rachel, Monique. Nessa performance, apresentada no Palais de Tokyo, em Paris, em 2010, e posteriormente em Avignon, Calle reunia fotografias, objetos e trechos de diários íntimos de sua mãe. Uma câmera foi instalada à sua cabeceira e lá ficou registrando o calvário familiar até o fim. Era uma tentativa de apreender seus últimos momentos. Assim como a francesa, Facó concebeu uma obra que intenta transcender os traços funestos e se põe a examinar coisas e pensamentos que deem conta de quem era a mulher que morreu e qual o tipo de relação ele havia mantido com ela ao longo da vida.
Parte desse vínculo aparece em menções verbais: A intimidade que construíram. As reações maternas de naturalidade diante das precocidades do filho. São aspectos que ganham a forma de anedota e alcançam a empatia do público. Outra parcela materializa-se na cenografia de Bia Junqueira, concebida como uma instalação. Cadeiras de acrílico, dispostas como se formassem um leito, e vaporizadores de ar são evocações do ambiente hospitalar. Menção que é logo explodida pelas mangueiras de luz, por um cacto gigante, por quadros que quebram o ambiente de pretensa gravidade ao mostrar Mick Jagger sorrindo ou o ator travestido de Frida Kahlo. O terrível e o trivial se combinam para compor um quadro de estranha harmonia.
Expediente recorrente no teatro contemporâneo, a presença do traço documental evoca montagens recentes, como Processo de conserto do desejo. No título, Matheus Nachtergaele mergulha nas composições poéticas deixadas por sua mãe, morta quando ele era um bebê de pouco mais de três meses. Ambos – Nachtergaele e Facó – oscilam entre a representação da figura materna e a afirmação de seus lugares como filhos. Mamãe, no entanto, merece uma camada suplementar: certa tinta de ficção que transforma Marpe em Marta e Alámo em Lázaro.
A mescla entre o traço autobiográfico e a narrativa ficcional conquistou notoriedade com Fils, romance de Serge Doubrovsky, reverenciado como marco do que se passou a denominar como autoficção. Trocar os nomes dos personagens, quando a identificação com os protagonistas da vida real é tão imediata, poderia soar como simples veleidade. Impressão que não resiste aos bordados e rendas que Facó sabe tecer para recobrir sua perda. E coroar sua descoberta.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Mamãe
Onde: Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, tel. 3095-9400)
Quando: Quinta a sábado, às 20h30. Até 6/8
Quanto: R$ 25,00 a R$ 7,50
Duração: 70 minutos
Não recomendado a menores de 14 anos
Ficha Técnica:
Texto e atuação: Álamo Facó
Direção: Álamo Facó e Cesar Augusto
Produção Executiva: Laís Sampaio
Direção de movimento: Luciana Brites
Direção Musical: Rodrigo Marçal
Cenário: Bia Junqueira
Luz: Felipe Lourenço
Trilha Sonora: Álamo Facó e Rodrigo Marçal
Direção Musical do Performer: Lan Lanh
Figurino: Ticiana Passos
Preparação Vocal: Sonia Dumont
Foto cartaz: Julio Andrade
Fotos de cena: André Maceira
Projeto gráfico: Mary Paz
Produção SP: Inclinações Musicais e Álamo Facó
Colaboração Artística: Dandara Guerra, Fernando Eiras, Enrique Diaz, Bel Garcia, Remo Trajano, Julio Andrade, Tamara Barreto, Lidoka Martuscelli, Andrucha Waddington, Lully Villar, Marina Viana, Victor Garcia Peralta, Cristina Flores e Renato Linhares
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.