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Crítica Militante

O teatro gaúcho do século XIX revivido

26.7.2016  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Arquivo Pessoal/Ivo Bender

Durante muito tempo, acreditou-se que a história da dramaturgia produzida no Rio Grande do Sul foi protagonizada por um punhado de nomes esparsos no tempo, como Araújo Porto Alegre (1806-1890), Qorpo-Santo (1829-1883), Álvaro Moreyra (1888-1964), Ivo Bender (1936), Carlos Carvalho (1939-1985) e Vera Karam (1959-2003). Destes, Qorpo-Santo, Moreyra e Carvalho hoje emprestam seus nomes a salas de espetáculo em Porto Alegre, mas não parece haver um continuum entre eles. É nesse contexto que a monumental Antologia da literatura dramática do Rio Grande do Sul (Século XIX), obra em oito volumes escrita pelo pesquisador Antenor Fischer, vem derrubar alguns mitos.

Antes da divulgação do trabalho do estudioso gaúcho, era como se não houvesse grassado no estado uma “verdadeira” tradição dramatúrgica, cabendo a nós recompor seus fragmentos como um paleontólogo monta um esqueleto a partir de fósseis encontrados aqui e ali. Essa lacuna fundadora talvez ainda exerça algum efeito, mesmo que residual, na cena gaúcha. Afinal, conhecer o passado é um passo necessário para compreender o presente e refletir sobre as perspectivas no horizonte.

A questão soa grave porque, apesar dos diferentes centros de formação – acadêmica ou não acadêmica – no Rio Grande do Sul, falta aos personagens envolvidos no ofício (diretores, atores, dramaturgos, críticos, espectadores, etc.) uma perspectiva sobre de onde viemos e para onde vamos – mas, acima de tudo, sobre onde estamos na história do teatro gaúcho.

Diferentes historiadores da literatura trataram o texto para teatro como gênero de menor importância se comparado ao romance e à poesia. Nesta ‘Antologia’, a dramaturgia encontra papel de protagonista

É possível suspeitar que os inúmeros apelos do presente tenham mitigado a ânsia de conhecimento pela antiga tradição textocêntrica. Entre esses apelos da atualidade estão as teorias importadas e disseminadas nos diferentes campos do saber acadêmico (que durante muito tempo nos permitiram ler Qorpo-Santo exclusivamente como figura do teatro do absurdo ou do surrealismo, e não como ator singular de uma história brasileira), a irresistível dissolução das fronteiras entre linguagens e, claro, a sedução da performance. Não é o caso de escolher, evidentemente, entre o passado e o presente, mas de entender que, ao lado do estudo das mais arrojadas manifestações cênicas deve haver um espaço institucional sólido para a história do teatro no Rio Grande do Sul.

Foi sobre esse segundo aspecto – o olhar para o passado – que se debruçou, durante mais de uma década, Antenor Fischer. Ele dedicou mestrado, doutorado e dois pós-doutorados (na UFRGS e na PUCRS) à dramaturgia produzida no Rio Grande do Sul. Como os trabalhos foram realizados dentro da área de letras, o foco recaiu sobre a produção textual, servindo de base para os pesquisadores que virão desbravar o fenômeno teatral em relação aos aspectos da encenação e da recepção. Fischer, no entanto, realiza importantes apontamentos nesse sentido.

Qorpo-Santo tem lugar assegurado na obra de Antenor FischerCedoc/Funarte

Qorpo-Santo tem lugar assegurado na obra de Antenor Fischer

O resultado de sua inédita pesquisa começou a vir à tona fora do ambiente acadêmico apenas no início de 2015, quando os principais jornais do estado repercutiram o lançamento, ocorrido em novembro de 2014, de seu Dicionário de autores da literatura dramática do Rio Grande do Sul, publicado de forma independente por um selo próprio, o FischerPress.

O volume de 350 páginas trazia, pela primeira vez na história, verbetes sobre dramaturgos de ofício e de ocasião que escreveram em solo gaúcho. Há relativamente pouca análise estética das obras, mas o objetivo do volume é claramente historiográfico – e, nesse sentido, de relevância inegável. Constam inclusive os acervos onde podem ser encontrados os textos mais raros de autores do século XIX. A lista abrange também jovens em plena atividade como dramaturgos ou adaptadores, a exemplo de Diones Camargo, Daniel Colin e Felipe Vieira de Galisteo.

Como resultado, a pesquisa de Fischer derrubou o mito da escassez da dramaturgia gaúcha, comprovando que a produção de textos teatrais e suas encenações foi constante e pujante desde o século XIX. Faltava apenas alguém que espanasse a poeira dos documentos disponíveis nos acervos históricos e os organizasse. A ironia é que algumas destas pistas estavam à frente do nariz dos porto-alegrenses: Hilário Ribeiro (1847-1886) e Eudoro Berlink (1840-1880), por exemplo, são nomes de ruas do nobre e badalado bairro Moinhos de Vento, na capital.

Devido ao escopo da pesquisa, Fischer não chegou a restabelecer um cânone – ou contracânone – da dramaturgia gaúcha do século XIX, mas indicou nomes relevantes, como Arthur Rocha (1859-1888), autor negro de origem humilde bastante encenado nos palcos gaúchos no século XIX; Anna Aurora do Amaral Lisboa (1860-1951) que denunciou a hipocrisia social, especialmente a masculina, da época; Damasceno Vieira (1850-1910), que transitou por diferentes gêneros, inclusive pelo drama nativista (as temáticas regionais não estiveram muito presentes no teatro gaúcho daquele século); e Joaquim Alves Torres (1853-1910), prolífico autor de peças de temas sociais, incluindo a emancipação feminina.

Tal perspectiva histórica nos permite repensar a missão do teatro em um tempo no qual o audiovisual assumiu o lugar da mídia de massa

Foi apenas no final de 2015 que o estudioso publicou, também por selo próprio, aquele que é um dos segmentos mais representativos de sua pesquisa: a Antologia da literatura dramática do Rio Grande do Sul (Século XIX), reunindo, em oito volumes, peças fundamentais do período, sempre precedidas por um estudo temático. Para facilitar a leitura, um nono livro trouxe os estudos introdutórios de cada um dos demais volumes. A obra teve tiragem limitadíssima, mas o autor se dispõe a enviar a versão digital gratuitamente por e-mail (basta solicitar pelo endereço fischerpress@gmail.com).

O primeiro tomo traz algumas das peças fundadoras do teatro no estado, acompanhadas por um estudo que contextualiza a época e debate a quem caberia o título de primeiro dramaturgo do Rio Grande do Sul. Há quatro candidatos, dependendo dos critérios adotados (local de nascimento, local de escrita da peça, local de publicação da peça, etc.): Hipólito José da Costa (de Um amor d’estranja, de 1811), um autor anônimo que publicou sob o pseudônimo Hum Militar Avulso (sua peça O político, e liberal, por especulação é de 1832), José Manuel Rego Vianna e Manuel José da Silva Bastos.

Já o segundo volume aborda a desonra como um dos temas mais presentes na produção da época. Episódios que levavam à calúnia e à difamação, como a perda da castidade da filha solteira ou a falência dos negócios no caso dos homens, tinham um efeito comparável à desmedida nos personagens da tragédia grega. No teatro oitocentista, a desonra representava o fim da vida social.

capa interna

Um dos aspectos mais ricos da Antologia é que recupera alguns dos principais temas em debate na sociedade do século XIX, como fica claro no terceiro volume, que traz o confronto entre a Igreja e a maçonaria. Um personagem da peça Adelina (1879), de Damasceno Vieira, chega a fazer um brinde à “extinção dos jesuítas”. As peças reunidas no quarto tomo têm como questão central o divórcio, quase um século antes de ser permitido em lei no Brasil, o que ocorreu apenas em 1977. O envolvimento dos dramaturgos nos debates podia implicar também certo ativismo, a exemplo das peças abolicionistas que tinham sua renda revertida para a compra da liberdade de escravos. Como destaca a introdução do quinto volume, a Sociedade Partenon Literário foi importante nesse sentido. O “teatro de tese” do Partenon Literário também foi verificado na defesa do ideal republicano, em oposição à monarquia – tema do sexto volume.

Recuperando a importante dramaturgia de autoria feminina no Rio Grande do Sul, o sétimo tomo interessa aos estudos feministas no sentido de reescrever a história da participação das mulheres na criação artística. Segundo Fischer, a primeira autora de uma peça teatral no estado foi Maria da Cunha (1866-1911), que publicou o drama Uma lágrima derramada ou O ramo de violetas e a comédia A flor do deserto, ambos em 1887. Depois, veio Andradina de Oliveira (1878-1935), nome que tem sido recuperado no meio acadêmico e teve seu romance O perdão (1910) reeditado em 2010 pela Editora Mulheres. No teatro, escreveu os dramas Viúva e virgem, Berço vazio e O sacrifício de Laura, os três de 1891. A pesquisa também destaca as irmãs Revocata Heloísa de Mello (1860-1945) e Julieta de Melo Monteiro (1863-1928), além de Anna Aurora do Amaral Lisboa (1860-1951).

O último volume da Antologia aborda as comédias, gênero que correspondeu a um terço das peças gaúchas do século XIX estudadas pelo pesquisador – mesmo que, na esteira de Aristóteles, o texto humorístico fosse considerado menor quando comparado às manifestações tidas como sérias. Molière era uma referência presente, tanto que Damasceno Veira criou uma paródia do personagem Sganarello intitulada Por um retrato (1875). Nessa seara, naturalmente há lugar assegurado para os textos de Qorpo-Santo, talvez o dramaturgo gaúcho a quem tem sido dedicada uma importante fortuna crítica – ainda modesta em quantidade, mas honrosa se comparada a outros nomes muito menos conhecidos.

Fischer contextualiza, no estudo introdutório do primeiro volume, que os fundamentos de “uma nova atividade mental e cultural” começaram a aparecer apenas ao fim da Revolução Farroupilha, quase na metade do século XIX. Escreve ele: “[F]oi no teatro que os intelectuais e homens de letras sul-rio-grandenses daquele período encontraram, senão seus meios mais adequados de expressão, pelo menos a forma de atingir um maior número de pessoas, uma vez que a grande maioria da população gaúcha era, como se viu, de iletrados e analfabetos”[1].

Tal perspectiva histórica nos permite repensar a missão do teatro em um tempo no qual o audiovisual assumiu o lugar da mídia de massa, enquanto o palco parece ter se tornado um fenômeno de nicho – seja em manifestações de perfil mais comercial baseadas em estrelas da televisão e voltadas ao público de alta renda, seja as de caráter exploratório da linguagem cênica, frequentemente atraindo uma elite intelectual já iniciada em seus procedimentos (embora a ânsia de atingir o maior número de espectadores nunca tenha saído do horizonte dos criadores).

Fica claro, portanto, que a investigação de Fischer preenche uma enorme lacuna na bibliografia sobre a dramaturgia gaúcha e, por extensão, brasileira. Diferentes historiadores da literatura trataram o texto para teatro como gênero de menor importância se comparado ao romance e à poesia. Nesta Antologia, a dramaturgia encontra papel de protagonista. Ainda restará por ser feito um enorme esforço a fim entender essa produção em conexão com os demais aspectos do teatro. Resta torcer (orar?) para que outros pesquisadores ampliem estes estudos e que os criadores cogitem trazer alguns destes textos de volta ao lugar que lhes é merecido: a cena.

[1] FISCHER, Antenor. A literatura dramática do Rio Grande do Sul (Século XIX). Estudos temáticos. Porto Alegre: FischerPress, 2015, p. 19.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:

Antologia da literatura dramática do Rio Grande do Sul (século XIX) (volumes I a VIII, versão digital gratuita, solicitar pelo e-mail fischerpress@gmail.com)
Autor: Antenor Fischer
Editora: FischerPress (2015)

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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