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Crítica Militante

A linguagem do mal-estar e do desejo

27.8.2016  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Cacá Bernardes

Existe algo de premonitório na dramaturgia de Alexandre Dal Farra. Não se está a dizer que sua recente trilogia Abnegação adivinhe o futuro. Mas paira, por certo, a sensação de que o autor soube se conectar ao seu tempo: Deu concretude a questões e mal-estares ainda difusos, que só viriam a tomar corpo um pouco mais adiante.

A realidade política e a crise vivenciada pelo PT nos últimos anos estão no horizonte das três peças – um ciclo iniciado em 2013 pelo grupo Tablado de Arruar e que se encerra agora, com a encenação de Abnegação III – Restos. Ainda assim, política e partido não aparecem propriamente como temas ou assuntos abordados em cena (seria pouco produtivo, por exemplo, buscar nessas obras subsídios para reconstruir a história recente). Antes, surgem como estruturas a serem observadas de perto. Formas que viriam a pautar a organização da sociedade, do poder e dos discursos. Forma, aliás, é um termo essencial quando se trata de analisar a ficção de Dal Farra. Seu universo temático não é aleatório. Mas sua escolha parece pautar-se, sobretudo, pela possibilidade de apontar o que está encoberto.

A escolha por situações privadas, talvez, venha evidenciar um lugar e um tempo em que não se pode mais dar conta do coletivo

Fala-se de política. Só que não propriamente de política. Constroem-se episódios de violência, de cinismo, de luta de classes (esse termo tão em desuso). O que se busca examinar, porém, ultrapassa esses tópicos, segue subjacente a eles. Ao público, permite-se o acesso a formatos planos, achatados. Assistimos a sintomas, a vislumbres, a pedaços. Sempre com o incômodo de não saber, com segurança, o que está em jogo.

Abnegação III merece o subtítulo de Restos. O que terá sobrado após a ascensão e queda do partido – será que é disso que se está a falar quando se fala de restos? As expectativas são, mais uma vez, subvertidas. O que se coloca por trás do que nos é dado a ver? A peça vem observar ambientes privados. Surgem, ocasionalmente, menções a um passado ligado à militância de esquerda. Note-se: tão casuais, como seriam quaisquer outras reminiscências desses personagens. Somos informados do envolvimento de um deles com a luta armada e com os movimentos sociais durante a ditadura. Observamos uma discussão entre dois homens que trabalharam para o partido – ainda que o crucial, neste caso, seja apenas a disputa hierárquica entre eles.

Da segunda parte dessa trilogia, de subtítulo O começo do fim (2015), saía-se com a impressão de que o texto tangenciava algo no qual não chegava nunca a tocar. O assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, era apresentado ao lado de outras situações de violência – sem relação com o caso. Dal Farra pretendia abordar a violência? Ou um pretenso envolvimento de um partido político com um crime? A dissolução de antigas utopias de esquerda? Uma nuvem de fumaça recobre suas intenções.

Formatos planos, achatados e insegurança sobre o que está em jogoCacá Bernardes

Formatos planos, achatados e insegurança sobre o que está em jogo

Nesse desfecho do tríptico, o procedimento parece se adensar. A amarração feita pela violência na segunda parte de Abnegação desaparece aqui. Não há um assunto comum a unir – mesmo que falsamente – as pontas. Apenas um mal-estar disseminado. Alguma melancolia não edulcorada a espraiar-se do palco em direção à plateia, uma ânsia de fuga ou esquecimento. Os esquetes que vão à cena miram conflitos familiares ou conjugais. Não se trata de restringir o escopo para investigar naturezas íntimas, questões existenciais. A escolha por situações privadas, talvez, venha evidenciar um lugar e um tempo em que não se pode mais dar conta do coletivo.

Não apenas o conteúdo do discurso político está morto. É a própria possibilidade de se sustentar um discurso político que se coloca sob suspeição. A descrença de Dal Farra está de tal maneira arraigada às situações ficcionais que cria, que é de impossibilidades que se constrói essa dramaturgia. Uma sucessão de negações, de desaparecimentos, de mortes simbólicas – mas nos é dado conhecer apenas a aparência. Mil vezes pode o negativo ser reproduzido para gerar fotografias em positivo. Incontáveis arranjos são feitos para dar conta dessa incapacidade essencial de refletir sobre o passado, sobre o presente. Mas ele está lá. Guardado em alguma gaveta. Incômodo.

Após observar a gênese do Partido dos Trabalhadores, a tomada do poder e o desencanto subsequente, a obra se lança, nesse terceiro capítulo, a situações aparentemente desconexas. Retratos de diferentes estratos sociais construídos a partir de conversas desimportantes. Na casa de uma família rica fala-se sobre um empreendimento no campo. Em um ambiente de classe média, o ex-marido retorna para aplacar seu desamparo. Em um lar de aparência mais pobre, vemos a chegada incômoda de um padre e um estranho blecaute. Tudo soa fora de lugar. O quadro pintado é verossímil. Mas atravessado por um estranhamento essencial.

Essa análise talvez demonstre caminhar em círculos porque é essa a sensação que emana de Abnegação. Um andar sem destino definido. Pouco firme. Feito de recuos e negaceios. Se os personagens patinam em suas falas, a direção virá a plasmar isso no meio como dispõe os intérpretes em cena. Estão todos alinhados. Voltados para o espectador. Sem interação entre eles. Seus corpos, sentados em cadeiras, se movem. Mas não se movimentam. Estão estáticos – como se presos – mas se debatem. É a falsa sensação de normalidade. Os corpos que se mostram para nós planificados são visões de relações planificadas, como se materializassem o que se dá (ou não se dá) na troca verbal. Os diálogos não se realizam, de fato. Ainda que pressuponham a presença do outro, não são mais que solilóquios – curtos ou longos.

Proposital vulgaridade contamina o que é ditoCacá Bernardes

Proposital vulgaridade contamina o que é dito

Os personagens mais jovens, que nasceram e cresceram nas últimas duas décadas (ou seja, sob a égide de um projeto de esquerda que governou o país), demonstram uma necessidade de se autodefinirem, se explicarem para os seus pares, circunscreverem o lugar no mundo que estão a ocupar – ou que julgam ocupar. Tentam conceituar angústias e encontrar sentido para um entorno em escombros.

À exceção dessas passagens, a comunicação é quase toda só função fática, um amontoado de termos para manter viva a ilusão da interlocução sem que nenhum conteúdo real circule entre emissor e destinatário. Uma propositada vulgaridade contamina o que é dito. Ela já se colocava nas duas primeiras partes de Abnegação. E volta, com certas peculiaridades, neste epílogo. São sinais em aparência muito banais, e ainda assim muito contundentes, de uma sociedade que vivenciou a transformação via consumo. Não pela reflexão, não por uma mudança na formação escolar, mas pela aquisição de produtos – muitos deles supérfluos. É isso que nos tornamos. Perdidos em meio ao sonho desfeito. Parados. Histéricos, gritando de um lado ou do outro do muro. Mas sem dizer nada. Supérfluos, nós mesmos. Um amontoado de existências redundantes, de modos de vida desnecessários, de desejos murchos.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
Abnegação III – Restos
Onde: Oficina Cultural Oswald de Andrade. (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro, tel. 11 3222-2662)
Quando: Terça e quarta, às 20h. Até 31/8
Quanto: Grátis

Ficha técnica:
Autoria: Alexandre Dal Farra
Direção: Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano
Com Alexandra Tavares, Amanda Lyra, André Capuano, Antonio Salvador, Ligia Oliveira e Vitor Vieira
Provocadores:  Janaina Leite e Eduardo Climachauska
Direção de arte: Tablado de Arruar
Desenho de luz: Wagner Antônio
Direção de produção: Carla Estefan
Assistente de produção: Gabriela Elias
Direção técnica: Luana Gouveia

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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