Crítica Militante
10.8.2016 | por Daniel Schenker
Foto de capa: Ronaldo Gutierrez
O Grupo Tapa caminha numa certa contramão em relação ao painel da cena de hoje. Segue apostando no chamado teatro de texto, calcado na relevância da palavra. A montagem de Gata em telhado de zinco quente, atualmente em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, confirma a linha de atuação do Tapa, no que diz respeito à escolha de uma dramaturgia de peso (agora, Tennessee Williams), cuja qualidade é realçada diante do público. Mas ao conferir importância à literatura dramática, o grupo não coloca a cena em segundo plano.
Os espetáculos não são concebidos com o simples intuito de apresentar um enredo ao espectador, e sim com o de fornecer (sem impor) possíveis chaves de leitura para as obras originais. O destaque destinado à palavra não leva necessariamente a uma adesão acomodada à gramática do realismo, à intenção de suscitar uma identificação imediata, alienada, no espectador por meio de uma cena escorada na reprodução do real.
Talvez o espetáculo ‘Gata em telhado de zinco quente’ não aponte um caminho inédito dentro da jornada do Tapa. A fidelidade a certos princípios artísticos, porém, não deve ser entendida como repetição
Como em outros espetáculos, o diretor Eduardo Tolentino de Araujo volta a investir numa cena distante do cenário de gabinete convencional. Vale lembrar que na montagem de Vestido de noiva (1994), de Nelson Rodrigues, o diretor ambientou as cenas do plano da realidade no fosso do palco. O espectador acompanhava-as através das imagens refletidas num espelho.
Em Gata em telhado de zinco quente, Tolentino indica possibilidades de leitura potencializadas pela proposta cenográfica de Ana Mara Abreu e Alexandre Toro e pelo figurino de Gloria Kalil para Maggie, a protagonista do texto – traduzido por Augusto Cesar. O vestido encardido de Maggie e o esqueleto de uma cama e os espelhos embaçados que compõem o cenário explicitam (sem reiterar) o desgaste dos relacionamentos que atravessam a peça.
O espectador se vê diante de um núcleo familiar no qual a maior parte dos integrantes não se suporta. Maggie (Barbara Paz) é desprezada por Brick (Augusto Zacchi), o marido, devido a um acontecimento do passado envolvendo um amigo dele. Brick demonstra impaciência com as intervenções da Mãezona (Noemi Marinho) e do Paizão (ZéCarlos Machado), que, por sua vez, desdenha do filho mais velho, Gooper (André Garolli), da esposa dele, Mãe (Fernanda Viacava), e dos netos. Sentindo-se preterido pelo Paizão, assombrado por doença terminal, Gooper prioriza os interesses financeiros em detrimento dos laços afetivos. Durante a maior parte do tempo, os personagens não enfrentam o desprezo dos outros em relação a eles, talvez porque habitem mundos particulares, desassociados – pelo menos, parcialmente – da realidade, dado frequente em textos de Williams como À margem da vida e Um bonde chamado desejo. Nem todos os elos entre os personagens de Gata em telhado de zinco quente, contudo, foram corrompidos. Os vínculos entre Brick e Maggie e, principalmente, dele com Paizão – ambos abalados por fortes dores físicas – irrompem em cena.
É no registro dos atores que a conexão com o realismo se faz mais presente. As características centrais dos personagens despontam com clareza, mas não significa que os intérpretes trabalhem de maneira impessoal, como se tão-somente obedecessem às sinalizações das rubricas. No elenco, Machado frisa a rispidez de Paizão sem enveredar por linearidade redutora da humanidade do personagem.
Uma montagem como a de Gata em telhado de zinco quente – exemplar dentro da travessia do Tapa – remete a uma polêmica histórica: a habitual associação entre o apreço pelo material escrito e uma vertente ultrapassada de teatro. A questão alude ao início da cena brasileira moderna, que se estabeleceu com o surgimento de duas companhias emblemáticas em 1948: Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), conduzida pelo industrial italiano Franco Zampari, e Teatro Popular de Arte (TPA), capitaneada pelo empresário Sandro Polônio, conjunto rebatizado de Companhia Maria Della Costa a partir da inauguração do teatro com o nome da atriz, em 1954.
Essas companhias dotadas de estruturas de grande porte deram prosseguimento a uma característica do teatro amador desde o começo da década de 1940 – mais exatamente, desde a chegada do polonês Ziembinski ao Brasil, em 1941: a presença do encenador (estrangeiro, no caso) nos palcos nacionais promovendo uma revolução no campo da cena e no do ofício do ator.
Enquanto os atores antigos muitas vezes sequer decoravam o texto – sabiam que o público estava bem mais interessado no ator que na peça propriamente dita e, por isso, se valiam da figura do ponto –, os primeiros atores modernos foram instruídos pelos encenadores a adotar uma atitude mais responsável em relação ao texto, no que se refere ao estudo verticalizado. Existia uma tensão aparente, entre o desejo em imprimir autoria na cena e a determinação em não tratar o texto de forma arbitrária, no trabalho dos encenadores modernos. Uma tensão apenas aparente porque a valorização do texto não implica em ausência de apropriação na transposição do mesmo para o palco.
O objetivo dessa evocação não é o de defender um parentesco direto entre o Grupo Tapa e o TBC. Tolentino assume outras influências, como as do Grande Teatro da TV Tupi e de produções do Teatro Tereza Rachel1, além de montagens como Seria cômico… Se não fosse sério (1973), de Friedrich Dürrenmatt, direção de Celso Nunes, e A mais sólida mansão (1976), de Eugene O’Neill, encenado por Fernando Torres, ambos com Fernanda Montenegro. Cabe ainda aventar um diálogo entre a trajetória do Tapa e a do Teatro dos 4, sociedade mantida por Sergio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede, entre 1978 e 1993, que priorizou o texto, mesmo que o repertório da casa tenha se sobressaído mais pelo (quase) ineditismo, e o requinte das produções. Em todo caso, o fundamental é chamar atenção para o fato de que historicamente a valorização do texto não está ligada, como muito se atribui, a um teatro atado ao passado, e sim ao processo de transição para a cena moderna – portanto, ao novo.
Diversos diretores fizeram e continuam fazendo a história avançar ao romperem com uma postura subserviente, submissa, em relação à peça, destronando o autor de um lugar soberano, absoluto, intocável. Mas a autoria do encenador não se dá obrigatoriamente através de operações contundentes, visíveis, sobre a dramaturgia. Apresentá-la na sua integridade pode até se constituir como um ato de ousadia em meio ao panorama atual. O trabalho de Tolentino vale como exemplo. É recomendável cuidado antes de classificar as propostas cênicas como contemporâneas ou obsoletas para que não se incorra em avaliações apressadas devido a uma definição cristalizada de teatro.
Talvez a montagem de Gata em telhado de zinco quente não aponte um caminho inédito dentro da jornada do Tapa. A fidelidade a certos princípios artísticos, porém, não deve ser entendida como repetição. Afinal, Tolentino não descansa sobre o conforto de bem-sucedidas criações anteriores. Nesse espetáculo, outros elementos, além dos já citados, reforçam essa impressão, como o contraste entre os rasgos emocionais, imperantes ao longo da peça, e a suavidade da iluminação de Nelson Ferreira, marcada por gradações sutis (apesar de mais aberta nos instantes em que Paizão se coloca de frente para o público), e da supervisão musical de Marcelo Pellegrini. Há um olhar constantemente renovado sobre os textos que aparece por meio de criações que não soam como carbonos de outros trabalhos.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
.:. Leia crítica de Gabriela Mellão a partir de Gata em telhado de zinco quente.
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1 Eduardo Tolentino de Araujo assumiu tais influências sobre seu trabalho em entrevista concedida ao autor dessa crítica para a tese de doutorado sobre o Teatro dos 4, defendida na UniRio em 2013.
Serviço:
Gata em telhado de zinco quente
Onde: CCBB RJ – Teatro I (Rua Primeiro de Março, 66, Centro, tel. 21-38082020)
Quando: Quarta a domingo, às 19h.
Quanto: R$ 20
Duração: 120 minutos
Não recomendado a menores de 14 anos
https://www.youtube.com/watch?v=LsJSX3ll4Fw
Ficha técnica:
Autoria: Tennessee Williams
Tradução: Augusto Cesar
Direção: Eduardo Tolentino de Araujo
Com: Bárbara Paz, Augusto Zacchi, ZéCarlos Machado, Noemi Marinho, André Garolli, Fernanda Viacava
Tradução: Augusto Cesar
Cenografia: Ana Mara Abreu e Alexandre Toro
Figurino: Gloria Kalil
Iluminação: Nelson Ferreira
Supervisão musical e sound design: Marcelo Pellegrini
Produção musical: Surdina
Produção executiva: Paloma Galasso
Produção executiva local: Ana Beatriz Figueras
Produção geral: Cesar Baccan / Baccan Produções
Idealização e produção geral: Grupo Tapa
Assessoria de imprensa: JSPontes Comunicação
Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.