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Crítica Militante

Concerto para trapos, cifras e silêncios

9.8.2016  |  por Gabriela Mellão

Foto de capa: João Wainer

Uma propriedade de luxo feita de trapos. É neste paradoxo que se enredam os nós da família de latifundiários de algodão apresentada por Eduardo Tolentino em sua versão de Gata em telhado de zinco quente, de Tennessee Williams, em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro após a estreia paulista.

Os trapos são dispostos de maneira a camuflar a própria essência maltrapilha. Dão forma aos móveis minimalistas do cômodo onde se passa a ação. A associação entre esse elemento e os fazendeiros evidencia a intensão de Tolentino em sublinhar a crítica social presente no texto do dramaturgo norte-americano, vencedor do Pulitzer em 1955.

Os trapos invocam o coração do clã. Por baixo das posses adquiridas pulsam destroços da humanidade.

A hipocrisia dos endinheirados, herdeiros da cultura escravocrata do sul dos EUA, é protagonista da trama. A celebração dos 65 anos do patriarca Paizão (Zécarlos Machado), fazendeiro diagnosticado de câncer terminal acostumado a tratar seus familiares como serviçais, revela-se um batalha de cães famintos, cada um competindo pela maior mordida no testamento.

Williams convida o espectador a se questionar sobre seus valores neste mundo regido por cifras. Vai ainda mais longe em sua crítica social ao trazer o preconceito para o cerne da discussão

As relações são destituídas de afeto. A submissão da Mãezona (Noemi Marinho) é tão suspeita quanto a bajulação do filho mais velho (André Garolli) e de sua mulher parideira (Fernanda Viacava). O único alheio a esta festa de interesseiros é Brick (Augusto Zacchi), o caçula, mas seu distanciamento não é indício de afeição.

O algodão puído dá origem a uma cama que beira a abstração e evoca um casamento em estado de decomposição, vivido por Brick e sua esposa, a gata referida no título da obra.

Como a metáfora sugere, Maggie (Bárbara Paz) é uma mulher em dia com seus instintos animais que luta com as forças que possui (sedução e perspicácia) para sobreviver. O casamento que não a afastou da solidão mas a distanciou da pobreza encontra-se ameaçado pela indiferença do marido. Sua nova condição social também corre perigo devido à ganância da família herdada do esposo.

Brick é um ex-atleta que renunciou aos troféus e à alegria de viver pelo alcoolismo. Desde a morte de seu amigo Skipper refugiou-se no copo de uísque. Trocou seu furor de jogador-com-fé-no-futuro pela prostração dos que já deixaram de viver o presente. Desistiu do trabalho, abdicou da vida social e passou a admitir não nutrir desejo pela mulher, apesar das investidas constantes da felina.

Bárbara Paz e Augusto Macchi: realismo com poesiaJoão Wainer

Bárbara e Zacchi: realismo com poesia

Williams convida o espectador a se questionar sobre seus valores neste mundo regido por cifras. Vai ainda mais longe em sua crítica social ao trazer o preconceito para o cerne da discussão.

A qualidade da relação entre Brick e Skipper é incerta. A dubiedade fomentada pelo comportamento controverso do ex-jogador foi inaceitável para a sociedade moralista dos anos 1950. O autor foi obrigado a atenuar a possível homossexualidade do personagem na versão cinematográfica da peça, imortalizada pelas interpretações de Elizabeth Taylor e Paul Newman, em 1958, e pelas seis indicações ao Oscar.

Apontada pelo autor como sua peça preferida, Gata… foi escrita após Zoológico de vidro e Um bonde chamado desejo (sucesso que tirou o dramaturgo do ostracismo da noite para o dia). Nela, a importância do não dito, das ditas entrelinhas, ganha fendas mais profundas e, assim, o retrato da falência do homem da segunda metade do século XX traços mais rarefeitos.

O silêncio do personagem Brick é provocador. A mudez consolida a profundeza de seu mundo interior e deixa ainda mais ambígua a natureza de sua sexualidade.

Ao abrir vazios propositais que requisitam a criatividade do público para ser preenchidos, o autor presenteia o espectador com o benefício da irresolução. Também incita a plateia a refletir sobre os alicerces de sua sociedade.

O autor explicita sua crença na qualidade desestabilizadora do silêncio – ato de privação de linguagem que marca, com mais radicalismo, a obra de autores como Samuel Beckett e Harold Pinter.

A esposa desprezada de Brick compara a mudez de seu marido a uma tentativa insignificante de conter um incêndio. “É como trancar a porta de uma casa em chamas. O fogo não acaba. O silêncio só alimenta o fogo. Ele cresce, inferniza”, diz ela, tentando em vão um diálogo com o esposo, em meio às labaredas alegóricas que também a atingem.

Como o silêncio de Brick, sua verborragia soa como um grito por socorro. São tentativas contrárias de aliviar os vales de angústia enraizados em seus peitos, uma vez que, para eles, amor se confunde com ilusão.

A fricção dessas energias díspares aquecem a cena, transformando o palco no telhado evocado no título. A frieza de Brick potencializa o apetite de Maggie, e vice-versa, num ciclo sem fim. Ao se reafirmar constantemente, este desencontro exacerba a tensão sexual existente entre o casal.

Por baixo das posses do clã, destroços de humanidadeJoão Wainer

Por baixo das posses do clã, destroços de humanidade

Tolentino, fundador do Grupo Tapa em 1979, é criador de uma obra que alcança uma combinação rara no mundo artístico hoje: longevidade, constância e qualidade. Como um sobrevivente, nada no contrafluxo das correntes de experimentações artísticas da atualidade, ao priorizar textos clássicos nacionais e internacionais, além de encenações dentro do cânones do realismo, num tempo de subversão das tradições do drama.

Reúne um time de talento homogêneo repetindo o feito de sua adaptação de Doze homens e uma sentença, que venceu a efemeridade de grande parte das criações teatrais e está em cartaz há seis anos. Também em Gata…, os atores parecem feitos sob medida para seus personagens.

Bárbara Paz envolve o realismo com poesia ao incorporar movimentos de felina. Ela se arrepia, pula, engatinha e dá o bote, sublinhando o DNA de sua estirpe selvagem (e honesta, como sua personagem se autodenomina), em contraposição à suposta civilidade do clã que a entorna.

Mostra presença cênica e domínio vocal notáveis. Alterna ritmos e intensidades com precisão cirúrgica, passando longe, entretanto, de realizar uma atuação racional. Entra com dignidade para o rol das atrizes que já interpretaram Maggie, como Elizabeth Taylor, Scarlett Johasson (na Broadway) e, por aqui, Cacilda Becker.

Os figurinos claros, de tecidos fluídos e bem cortados de Gloria Kalil, em seu primeiro trabalho teatral, evocam a sofisticação dos homens de elite, fazendo referência aos anos 50.

Tolentino estuda Tennessee Williams desde 2011, quando foi responsável pela reedição de sua obra, publicada pela editora É Realizações. Opta pela última versão do texto, sem a suavização de questões menos palatáveis para o público. Exclui alguns personagens secundários, como as crianças, netas de Paizão, centrando o drama em sua essência.

Ao revigorar este clássico, Tolentino relembra o público de que a crise dos valores humanos apontada por Williams permanece desgastada como os trapos do cenário. Recorda também de que não são necessários arroubos de linguagem para se criar uma experiência teatral singular.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

.:. Leia a crítica de Daniel Schenker a partir de Gata em telhado de zinco quente.

Serviço:

Gata em telhado de zinco quente
Onde: CCBB RJ – Teatro I (Rua Primeiro de Março, 66, Centro, tel. 21 3808-2020)
Quando: Quarta a domingo, às 19h. Até 21/8
Quanto: R$ 20
Duração: 120 minutos
Não recomendado a menores de  14 anos

Ficha técnica:

Autoria: Tennessee Williams
Tradução: Augusto Cesar
Direção: Eduardo Tolentino de Araujo
Com: André Garolli, Augusto Zacchi, Bárbara Paz, Fernanda Viacava, Noemi Marinho e Zécarlos Machado
Figurino: Gloria Kalil
Iluminação: Nelson Ferreira
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Assessoria de imprensa: Flavia Fusco Comunicação
Assistente de produção: Ariel Cannal
Produção executiva: Paloma Galasso
Produção geral: Cesar Baccan / Baccan Produções
Idealização e produção geral: Grupo Tapa

Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.

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