Crítica Militante
É um lugar-comum a afirmação de que, para a sobrevivência do teatro, é preciso que as crianças sejam levadas a pantominas e a outros entretenimentos como uma introdução às apresentações ao vivo; afinal, elas serão os futuros espectadores.
O que se tem esquecido é que essas mesmas crianças são os espectadores mais críticos e o melhor teste para saber se uma cena é enfadonha ou não, como lembra o produtor teatral britânico Cameron Mackintosh.
Resta saber o que agrada às crianças. O que torna uma cena enfadonha? Como um adulto pode saber? Dizia Cecília Meireles, e eu não me canso de repetir, que a infância, tão logo o homem a abandona, é um universo totalmente desconhecido para ele.
Os ingleses David Wood e Janet Grant, que há anos vêm se dedicando ao teatro para as crianças, elencam, no livro Theatre for children: a guide to writing, adapting, directing and acting, alguns dos mal-entendidos dessa área (o livro é de 1998, mas as ideias continuam válidas): um deles seria o de desdenhar o teatro para crianças, considerando-o muitas vezes um teatro de segunda categoria. Isso aparentemente acontece, aliás, com toda arte voltada ao público infantil, como, por exemplo, a literatura.
Muitos que atuam em peças para os pequenos supõem que as crianças precisam de constante alegria e entusiasmo, muito mais do que de profundidade e de sinceridade
Segundo Wood e Grant, “teatro para crianças é uma forma separada de arte com qualidades que o faz bastante diferente do teatro adulto. Mas não se trata de simplificar o teatro adulto, ele tem sua própria dinâmica e suas recompensas. Um teatro de qualidade para crianças é valioso pois abre a porta de um novo mundo de expectativa e imaginação para os pequenos” (WOOD; GRANT, 1998, p.5).
O mau teatro infantil, é bom destacar, provavelmente não engrossará o número de futuros frequentadores de teatro. Parece, todavia, que os adultos não levam isso em consideração; nem os que fazem o teatro para crianças nem os que levam as crianças a peças sem qualidade profissional e estética, como se o simples fato de se dirigirem ao teatro, de verem uma peça ao vivo, já valha como experiência artística.
Em A linguagem no teatro infantil, o pesquisador e encenador pernambucano Marco Camarotti (1947-2004) afirma que esse menosprezo para com o público infantil resulta do fato de a criança “ser encarada e tratada como um elemento débil, tolo, a quem só é viável dirigir-se através de uma linguagem frágil e grotesca, no mais das vezes descuidada, cuja produção é orientada pela falsa concepção de que para a criança tudo que se fizer serve, pois ela engole ‘qualquer coisa’” (CAMAROTTI, 2005, p. 20).
De fato, Wood e Grant afirmam que, mesmo que muitos achem que as crianças “não têm gosto”, isso não é justificativa para alimentá-las intelectualmente com “lixo”; ao contrário, para os autores, essa carência de “faculdades críticas” faz com que a responsabilidade desses profissionais seja ainda maior, já que eles vão criar o gosto estético desses pequenos espectadores. Essa ideia vai ao encontro da tese de Pierre Bourdieu de que o gosto estético é artificial, e que, no caso das crianças, caberia aos adultos formá-lo e desenvolvê-lo.
Continuando a elencar os mal-entendidos sobre o teatro para crianças, Wood e Grant afirmam que muitos dramaturgos, quando escrevem para os pequenos, por vezes ou perdem a claridade e o foco do texto, exigindo demais da audiência, ou, pior ainda, depreciam e menosprezam a inteligência e o entendimento das crianças.
Marco Camarotti cita a professora e pesquisadora Eliane Yunes (PUC-Rio) ao lembrar o engano que muitos profissionais dessa área incorrem ao se dirigirem às crianças “numa linguagem que se faz mutilada, reduzida, desvitalizada, como se os diminutivos e truncamentos fossem o modo de expressão da criança” (YUNES apud CAMAROTTI, 2005, p. 20).
Prossegue Yunes: “o discurso para ser decodificável não implica a dissociação da riqueza imaginativa… Um léxico claro não significa um léxico pobre, uma linguagem simples não se traduz em pobreza de ideias” (YUNES apud CAMAROTTI, 2005, p. 20).
Já os atores, de acordo com Wood e Grant, costumam forçar certa sinceridade na atuação, que não convence as crianças e, diria, constrange os adultos. Está aí, a meu ver, uma das grandes dificuldades dessa arte: ao mesmo tempo agradar e convencer esteticamente crianças e adultos. Há que se lembrar de que as crianças podem ler sozinhas, tão logo estejam alfabetizados, mas precisam sempre dos adultos para acompanhá-las ao teatro, sejam esses adultos o professor, o pai etc. Aliás, para acompanhá-las ao teatro e ao cinema, mas o cinema, parece-me, deu um passo além e vem conquistando facilmente adultos e crianças, a ponto de muitas produções infantis levarem uma grande audiência de adultos, mesmo sem a companhia das crianças, para as salas de cinema.
Muitos que atuam em peças para os pequenos supõem que as crianças precisam de constante alegria e entusiasmo, muito mais do que de “profundidade” e de “sinceridade”. E não é esse o caso: as crianças precisam de coisas densas e não apenas de peças jocosas, dançantes e com muito mais firulas do que conteúdo.
Ainda é comum, no teatro para crianças, correrias pela plateia, gritos e o constante, e às vezes aborrecido, diálogo entre atores e espectadores. Um diálogo que serve como guia para saber se de fato os pequenos estão acompanhando a trama. Talvez as crianças gostem de responder aos constantes questionamentos, não sei nem posso responder por elas, mas os adultos certamente acham esse recurso uma quebra de clímax e de poder encantatório de qualquer peça.
Em O teatro explicado aos meus filhos, Barbara Heliodora afirma que o teatro é também, sem dúvida, entretenimento, mas “pode descer a níveis bem baixos, quando só se procura nele o riso fácil, ou o deboche […]” (HELIODORA, 2008, p. 181).
Camarotti destaca ainda dois outros problemas do teatro infantil: um deles é o “pouco caso que a classe teatral demostra em relação ao teatro infantil. Para a maioria […] essa atividade não passa de um degrau para chegar ao teatro para adultos, o qual, em sua concepção, representa o verdadeiro teatro, aquele que dá prestígio e reconhecimento do público” (CAMAROTTI, 2005, p. 16).
A propósito, na opinião de Wood e Grant, seria importante que as crianças tivessem também sua própria sala de teatro, pois em muitos países as produções infantis se apresentam nos mesmos teatros das produções para adultos e, geralmente, as produções para crianças estão bem abaixo nas listas de prioridades.
Diria que mesmo estando cientes de todos os problemas que circundam o teatro para crianças, alguns de seus profissionais parecem não conseguir pôr em prática em suas dramaturgias e montagens a solução desses problemas. O teatro infantil ainda insiste em apresentar peças esteticamente pouco estimulantes, peças que não ultrapassam o lugar-comum – pelo menos do ponto de vista de quem acompanha as temporadas ou as produções que passam por Florianópolis.
Mas existem peças, é claro, que se destacam nessa área, e são exemplares. Uma que sempre costumo citar em sala de aula e nos meus ensaios é Esperando Gordô, da Cia. Lona de Retalhos, formada em São Paulo há dez anos e dedicada às linguagens do circo e do teatro. Seus criadores souberam ousar ao adaptar para crianças uma peça originalmente hermética, sem cenário e história: Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989). A adaptação – primeiro espetáculo do grupo – não perdeu a essência da obra e preservou o cenário e a fábula áridos, como requer a estética beckttiana, e conseguiu, mesmo assim, conquistar espectadores de todas as idades.
É da mesma companhia, cabe lembrar, Otelo e a loira de Veneza (2014), uma bem-sucedida adaptação para teatro de rua da peça Otelo, de William Shakespeare. Ao escolherem Otelo, uma tragédia no lugar de uma comédia, os autores da versão infantil não modificaram o seu final. Embora a peça tenha bastante humor, Otelo acaba matando Desdêmona (a heroína da peça), e, antes de ele próprio cometer suicídio, mesmo contra a vontade do público, Otelo adverte aos espectadores que é assim mesmo, pois nas tragédias de Shakespeare todos morrem.
Agora é esperar que, com mais estudos sobre o teatro infantil e uma maior valorização dessa arte, peças cada vez melhores e sobretudo bem-elaboradas esteticamente comecem a surgir com mais regularidade.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Referências:
CAMAROTTI, Marco. A linguagem do teatro infantil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005.
HELIODORA, Barbara. O teatro explicado aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
WOOD, David; GRANT, Janet. Theatre for children: a guide to writing, adapting, directing and acting. Londres: Faber and Faber, 1998.
Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.