Menu

Crítica Militante

A personagem vive

9.9.2016  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Emília Silberstein

Antes de chegar a Trinta gatos e um cão envenenado, espetáculo mostrado recentemente em Brasília, que voltará em novembro, algumas reflexões vadias sobre teatro. Pode ser?

Ouvimos de um encenador gaúcho, em palestra feita por ele durante visita à cidade há três anos, que a personagem de teatro, representativa da pessoa e, portanto, originária da vida, tem prazo de validade – e esse prazo venceu. O passamento da personagem, segundo disse, é algo “histórico”, ou seja, inexorável. A criatura de ficção veio a óbito assim como todas as convenções destinam-se a desaparecer, garantiu o diretor baseando-se nas crenças pós-dramáticas, tendência intelectual que, no Brasil, adotamos apressada e acriticamente.

Há trabalhos artísticos e teóricos sérios em torno do receituário pós-dramático, que inclui certo desprezo pelo texto, a substituição das personagens pela figura do ator ele próprio e o ceticismo quanto aos valores de clareza e coerência nos eventos cênicos. Essa fórmula decerto não produz apenas frivolidades como as do espetáculo Noite, uma das montagens que fecharam o vitorioso Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que encerrou no último domingo a sua 17ª. edição.

O autor Geraldo Lima arma o enredo de modo hábil, em estrutura simples e direta como a das tragédias, valendo-se até de lances praticamente simultâneos de revelação e reviravolta

Nessa Noite, os atores do grupo português Circolando esbanjam habilidades corporais para dizer rigorosamente nada. Perdoem o aparente mau humor, foi o que achei. Registre-se que algumas pessoas saíram durante a mais de hora e meia de espetáculo; a maioria dos espectadores, porém, aplaudiu de pé. Alguns urravam.

O que nos causa estranheza nos eleitores do pós-dramático é o ar de absoluta convicção de suas afirmações, como a de nosso diretor naquela palestra. Todos dizem as mesmas coisas, mas sempre como se enunciassem a mais original das novidades. Noutro momento, ouvi um ator afirmar não ter interesse em recriar seres humanos, preferindo dedicar-se a sugerir coisas como “o vento nas folhas”. Outros preferem a própria biografia a Hamlet, Alaíde ou Medeia. É impressionante.

Amor e ódio contracenam na peça de Geraldo Lima encenada por André AmaroEmília Silberstein

Amor e ódio contracenam no drama realista de Geraldo Lima

Tudo isso vem para dizer que, segundo entendo, a ideia de morte da personagem é não apenas falsa, é também empobrecedora das experiências que o teatro propicia. Em Trinta gatos e um cão envenenado, texto de Geraldo Lima encenado por André Amaro com o grupo brasiliense Teatro Caleidoscópio, temos bom exemplo de uma personagem – viva e com saúde, mórbida saúde – capaz de nos tocar e mesmo incomodar. E o faz justamente porque não se furta ao comentário do humano.

O espetáculo parte de uma peça previamente escrita, à qual diretor e elenco adicionaram elementos com imaginação e habilidade, embora sem alterar demais o texto (publicado em livro pela editora carioca Ponteio). Trata-se de uma história composta em bases realistas, mas contada com o auxílio de recursos expressionistas (ou fantásticos, como o diretor os chama no programa do espetáculo).

Esses recursos não realistas pertencem à peça de Geraldo Lima (o Coro de Máscaras e a Consciência Ideal de Zeza, a protagonista), tendo sido traduzidos em boa parte por estímulos sonoros, disparados ao vivo pelo trio de músicos formado por Pecê Sanváz, Flávia Neiva e Thiago de Moraes. Eles também trabalham como atores, somando seu desempenho à sensível presença das atrizes Lilian França e Vanessa di Farias. Vanessa interpreta Zeza, Lilian faz a mãe da garota infeliz.

Vemos cenas do cotidiano de uma família remediada, rotina que uma tempestade sacode nos primeiros momentos do espetáculo. Essa tempestade, com seu duplo valor de fenômeno natural e metáfora da relação entre os parentes – mãe, pai e dois filhos, rapaz e moça –, poderia incidir em atmosfera semelhante à das situações sombrias na tradição de Allan Poe, que o cinema banalizou. Mas não é o caso, porque o temporal é lançado à cena com a devida força, entrelaçando-se aos fatos do dia a dia e fornecendo o mote para que Zeza comece a se revelar.

Ela diz:

Eu gosto de noites assim, sem luz, escuridão total! Gosto de tempestade, raio, trovão, árvore sendo arrancada… […] telhado voando longe, o vento urrando por cima da casa, o desespero estampado na cara das pessoas… Gosto da violência da natureza…

Sua mãe, Altina, muito religiosa, reage meio horrorizada a essas palavras, e então se evidencia um dos eixos da história: a comunicação insuficiente, truncada, entre filha e mãe, esta (veremos depois) recusando-se a admitir os motivos profundos do comportamento de Zeza, hostil aos parentes e arredia ao contato com o exterior.

O espetáculo brasiliense foi encenado por André AmaroEmília Silberstein

O espetáculo brasiliense foi encenado por André Amaro

Cerca de 80 pessoas lotavam o Teatro Goldoni, sala pequena, mas flexível. A plateia dessa vez foi dividida em duas, uma de frente para a outra, enquanto o espetáculo desenvolveu-se no corredor formado entre elas. Em um dos extremos, o grupo de músicos; no outro lado do palco, a copa da casa de Altina; ao centro, a sala em que a família se reúne para as refeições. O que vemos são embates, duelos verbais dos quais Zeza por vezes participa. Mas a personagem frequentemente se expressa como pessoa encerrada em si mesma, impermeável ao diálogo.

O autor arma o enredo de modo hábil, em estrutura simples e direta como a das tragédias, valendo-se até de lances praticamente simultâneos de revelação e reviravolta. Zeza prepara as refeições do pai, mas o que parece amor é o mais denso dos ódios: a certa altura, saberemos que o homem a violentou quando a menina tinha dez anos de idade. A mãe, se percebeu ou suspeitou, preferiu manter silêncio, como quem guarda um segredo terrível.

A presença dos cantores e instrumentistas se mostra auspiciosa nesse que seria, em princípio, um drama realista e que não deixa de sê-lo, mas se enriquece com os dons sugestivos da música, que envolve canções e também efeitos percussivos, como os que Flávia obtém raspando as cordas do violino. Ressalto ainda (entre outras passagens) o momento em que Thiago abre a voz numa das canções da trilha, preenchendo a sala, eo bom violão de Pecê a pontuar esses Trinta gatos. Pode-se dizer do instrumentista o que uma vez se disse de Toquinho: “É um músico”.

O diretor André Amaro combina com senso de ritmo os dons do texto, os sons e a interpretação, evidenciando maturidade em seu artesanato. Haveria poucos reparos a fazer: um detalhe é o da comida e bebida imaginárias, tratadas como se fossem reais em gestos não muito convincentes. Mais importante: nem todos os atores se entregam com a mesma intensidade a suas criaturas; não deve mesmo ser fácil manter a concentração quando se veem até os poros do intérprete.

O saldo resulta mais do que positivo: o espetáculo toca, impacta a sensibilidade dos espectadores. O que tem muito a ver com o recorte dramatúrgico – quando sabemos da morte do pai, é compulsório aceitar que foi Zeza quem o matou e que o fez aos poucos, servindo-lhe lanches envenenados para vingar-se do abuso sexual sofrido na infância.

A loucura de Zeza é como que organicamente explicada ao público, sem didatismo, sem que se force a tecla da insanidade, decorrente das situações de violência. A ideia de que os indivíduos tendem a devolver e a reproduzir os ataques de que são vítimas explicita-se, no texto e no espetáculo, de maneira que me pareceu limpidamente humana. Décio de Almeida Prado diria que a dor é a mais universal das linguagens.

PS: Há em Noite cenas bem-humoradas e bem-sacadas (há também outras muito longas e cansativas). Os atores são inegavelmente talentosos, donos de seus corpos. O que a montagem não quer, de jeito nenhum, é fazer sentido, qualquer sentido. Reside nisso, nessa demissão voluntária, o aspecto discutível nos espetáculos que assumem os valores pós-dramáticos. Trinta gatos a meu ver se revela socialmente mais útil – e mais bonito.

.:. O espetáculo do grupo Teatro Caleidoscópio foi produzido com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC/DF) e esteve no Teatro Goldoni, em Brasília, de 5 a 21 de agosto. Voltará a cartaz no Espaço Semente, no Gama (DF), nos dias 5 e 6 de novembro. O livro Trinta gatos e um cão envenenado, de Geraldo Lima, foi publicado pela editora Ponteio (Rio de Janeiro, 2011).

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Fresta no cotidiano de uma família remediadaEmília Silberstein

Fresta no cotidiano de uma família remediada

Ficha técnica:
Trinta gatos e um cão envenenado
Texto: Geraldo Lima
Direção e iluminação: André Amaro
Com: Lilian França, Pecê Sanváz, Vanessa di Farias, Flávia Neiva e Thiago de Moraes
Cenografia, figurino e adereços: Marley Oliveira
Fotografia: Emília Silberstein
Filmagens: Orbeat Filmes
Comunicação e arte gráfica: NQ Comunicação
Produção: Juana Miranda e Luiza Kesketh

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

Relacionados