Crítica Militante
Elas vêm
outras e iguais
com cada um é outro e igual
com cada uma a ausência de amor é outra
com cada uma a ausência de amor é igual
Samuel Beckett
Em Santos
4, peça de Rodrigo García que abriu a quarta edição do Festival Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos em 8 de setembro, aproxima o início e o final dos tempos a tal ponto que ambos se confundem.
A vida é sintetizada poMatheus José Maria r um solo de tênis tendo como paredão de fundo um close da pintura A origem do mundo, de Gustave Courbet. Um ator faz tremer o embrião da existência enquanto se esforça para vencer a si mesmo. Atira bolas na vagina mais famosa e polêmica das artes plásticas ao som de gemidos múltiplos. O jogo é narrado em tempo real por um comentarista. A entonação do locutor, a mesma dos milhões de torneios da história do tênis, evidencia a característica ordinária da disputa. Ela perde sua natureza singular, se generaliza. Se todas as partidas se parecem, não há com o que se preocupar. Basta ocupar-se com a diversão.
A destruição é decorrência deste recreio permanente, habitat de jogadores genéricos. Demolir é edificante, exaltam os atores. “Há mais beleza na demolição do que nas sinuosas formas construtivas do presente”, celebram.
A obra de García trata justamente da ausência do comunicar. Como Beckett, ele instaura o fim do jogo do sentido, convidando a plateia a descobrir a estranha beleza do mergulho no vazio
A devastação está impregnada no amontoado de cenas clichês que compõem o espetáculo, ilustrativas do vazio da existência do homem contemporâneo.
O título da obra, assim como o restante dela, destaca o mundo da literalidade desvelado em cena. Como indicado em 4, são quatro os protagonistas. Privado de sintoma de individualidade, o quarteto se dissolve em uma massa heterogênea de figurantes composta também por duas meninas locais que corporificam o horror dos padrões de beleza e de consumo da contemporaneidade ao se transfigurarem em bonecas animadas diante do público. Chegam garotas e tornam-se barbies em carne, osso, salto alto e vestidos cintilantes após o tratamento de beleza recebido, orgulhosas de suas aparências pasteurizadas.
Rodrigo García representa a desumanização com vigor e violência, mas sem aprofundamentos. Não há significados subliminares em seu teatro. Tampouco há simbolismos elaborados para serem interpretados. O encenador trafega pela obviedade, carregando na luz fria do teatro para não correr o risco de criar ilusões. Parece querer que a ruína do homem contemporâneo seja provada crua, sem possíveis facilitadores digestivos estéticos ou de linguagem.
A fala de García, argentino radicado na Espanha, parece fazer apologia à deformidade humana decorrente das distorções do mundo capitalista. Os atores rompem a rede de afeto que os une para se ligarem ao nada. Quando se abraçam para enaltecer o mal não mostram os rostos. Além de serem destituídos de nomes, individualidades e jornadas, em seus raros momentos de lucidez são também desprovidos de rostos. Nestes instantes, são projetadas no telão que ornamenta o palco despojado frases como: “Platão associou a verdade à virtude porque naquela época não havia bares nem pubs”. Ou: “A maquinação do mal segrega saliva”. Ou ainda: “Há proteínas na iniquidade e vitaminas na má-fé”.
O enaltecimento da maldade, entretanto, aparenta não passar de discurso. Os humanos representados só parecem conseguir fazer mal a si mesmos. São espelhamentos dos quatro galos que ocupam a cena calçando tênis coloridos que dificultam a locomoção. Como eles, mostram-se sintonizados com as perversidades da sociedade do consumo preconizada por Guy Debord. Como eles, são seres privados de consciência crítica, mas não dos artifícios das tendências. Como eles, estão alienados e inertes.
A aproximação entre animais e homens é um recurso habitual do dramaturgo e diretor em suas encenações, e frequente entre artistas contemporâneos como Angelica Liddell, também destaque desta edição do Mirada – em Eu não sou bonita, por exemplo, espetáculo que integrou a primeira Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, a performer evocava o estupro sofrido na infância contracenando com um cavalo.
García desperta a fúria dos protetores dos animais com trabalhos como Acidentes, em que um homem tortura uma lagosta viva para depois grelhá-la e degustá-la em cena, acompanhada de vinho. Tartarugas, lesmas, minhocas, entre outros animais já integraram o elenco de sua companhia La Carnicería Teatro, nomeada em alusão ao açougue da família do diretor – sua provável ocupação caso não tivesse optado pela carreira artística. Também gera cólera entre católicos com Gólgota picnic, trabalho apresentado no país, em 2014 que sofreu censura velada ao ser rejeitado na programação de algumas cidades no mundo que costumam receber as obras do encenador. Na França, por exemplo, Gólgota foi visto apenas em Paris e Toulouse.
O argentino muda-se para Madri em 1986 em busca de novas oportunidades como diretor. Suas tentativas de montar textos de Harold Pinter e Samuel Beckett se frustram. Ninguém na época o conhecia por lá e, portanto, aprovava seus projetos. Ironia da vida, se vê obrigado a trabalhar em publicidade contribuindo para a indústria que hoje dedica a desconstruir em cena. Indiretamente, é claro. Ele faz questão de deixar ao público a tarefa de fazer sua própria leitura.
Segundo diz, torna-se dramaturgo por acaso. Impedido de montar Beckett, funda sua companhia em 1989 e passa a escrever textos próprios, inspirados sobretudo na realidade cotidiana da periferia de Buenos Aires em que passou a infância.
A interlocução com o autor irlandês permanece. Beckett não desejava estabelecer um diálogo tradicional com o espectador. A obra de García trata justamente da ausência do comunicar. Como Beckett, ele instaura o fim do jogo do sentido, convidando a plateia a descobrir a estranha beleza do mergulho no vazio.
Seu vazio não acompanha silêncio, mas agitação. Uma sucessão de ruídos, imagens e vozes bombardeiam a plateia preenchendo-a de estímulos, através de cenas superficiais combinadas de forma aparentemente aleatória que traduzem efeitos de uma mercantilização generalizada. A busca parece ser de construção de um universo oco e desprovido de lógica. A alienação torna-se, portanto, forma e conteúdo.
O espectador não escapa ileso. Assim como os atores, o público (ou seu representante) se torna protagonista do ridículo. Além de rebolar em cena, vai ter que fingir se masturbar dentro de um saco de dormir e comentar sobre suas posições sexuais preferidas.
García cultua a soberania do vazio sugerindo que dele partimos, nele nos encontramos e a ele retornaremos. Qual o sentido da vida, se ela nasce condenada a seu arrasamento num mundo carente de significação? Talvez nem Godot saiba a resposta.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
.:. A jornalista viajou a convite da organização do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos.
https://www.youtube.com/watch?v=5yUc87ttSRE&feature=youtu.be
Ficha técnica:
4
Texto: Rodrigo García
Concepção e direção: Rodrigo García
Com: Núria Lloansi, Juan Loriente, Gonzalo Cunill e Juan Navarro
Cenografia e luz: Sylvie Mélis
Criação de vídeo: Serge Monségu, Daniel Romero e Ramón Diago Criação de som: Daniel Romero, Serge Monségu e Juan Navarro
Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.