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Artigo

Dialética do Alfenim

16.9.2016  |  por José Antonio Pasta

Foto de capa: Felipe Ando

(Nota crítica e teórica)

Comentando as diferenças que apartam um do outro o teatro e o romance, o celebrado crítico e historiador Décio de Almeida Prado escreveu: “(…) é difícil imaginar, por exemplo, um romance como o Quincas Borba transposto para o palco sem perder sua imponderabilidade, a sua atmosfera feita menos de fatos que de sugestões, de coisas que temos o cuidado de não definir com clareza nem a nós mesmos”.[1]

Pois foi a isso mesmo que se lançou o Coletivo de Teatro Alfenim: transpor para a cena o Quincas Borba machadiano, nada menos. Os resultados indicam que o fez com muita consciência da dificuldade, se não da virtual impossibilidade da tarefa, apontada pelo crítico. Porém, é mesmo bastante provável que o tenha feito não apesar dessa dificuldade, realmente exemplar, mas, em boa parte, por causa dela.

Ao abrir-se com a cena do cortejo, que conduz ao patíbulo um escravo condenado pelo assassinato de seu senhor e dono, a peça foi direto ao ‘coração das trevas’, que é, por assim dizer, a verdade do ponto de vista narrativo do romance ‘Quincas Borba’

De fato, parece haver uma espécie de afinidade eletiva entre o trabalho do Alfenim e a dificuldade daquilo que intenta. Essa afinidade, salvo engano, não é da ordem do masoquismo, mas da dialética. Como se sabe, entre tantas outras características, a dialética – hoje famigerada – tem o vezo de procurar resolver os problemas, não ao aliviá-los, obviando o que neles é obstáculo, mas, ao contrário, incrementando a sua dificuldade, extremando-a, até que ela passe no seu outro. Ainda recentemente (2016), na derradeira oportunidade que tive de acompanhar os trabalhos do grupo, já ele se entregava – sucedendo à lida com o Quincas Borba – ao estudo do Fatzer, de Brecht, que reconhecidamente não é apenas difícil ou dificílimo, mas até impossível, três tantos impossível, para dizê-lo à maneira rosiana.

Como se sabe, essas obras, – o Quincas Borba e o Fatzer – não eram nada fáceis já para seus próprios autores, antes pelo contrário. Brecht trabalhou no Fatzer durante vários anos, de 1926 a 1930, em pelo menos cinco fases sucessivas de tentativas de conclusão, até chegar a uma desistência final[2]. Considerou-o, então, “de todo impossível para a cena”, sem prejuízo de julgá-lo, ao mesmo tempo, um de seus trabalhos de “mais alto nível técnico”. Machado de Assis, por sua vez, começou a publicar o Quincas Borba, na imprensa, aos capítulos, à maneira do romance de folhetim, em 1886, para só vir a concluí-lo em 1891. Levou cinco inacreditáveis anos, publicando um romance seriado, esquisitice a que se acrescenta o fato de que interrompeu a publicação duas vezes, por cinco meses, em 1888, e por outros quatro meses, em 1889, tendo, ainda, reformado a parte publicada, para dar-lhe a feição definitiva que ganhou em livro.

Cena de 'Memórias de um cão', com o Coletivo Alfenim (PB)Divulgação

Cena de ‘Memórias de um cão’, com o Coletivo de Teatro Alfenim (PB)

Note-se que nem Brecht era, na época, aprendiz de dramaturgo, nem Machado o escritor relativamente apagado de seus romances iniciais. Encontrava-se, este, no fastígio de sua maturidade intelectual e artística, tendo já, à maneira do Barão de Münchaunsen, arrancado-se à pantanosa mediocridade local, puxando-se pelos próprios cabelos, isto é, escrevendo as inauditas Memórias póstumas de Brás Cubas.

Ocorre que Brecht, no Fatzer, procurava dar forma ao impasse a que então chegavam, ao mesmo tempo, o “progresso” burguês e o projeto revolucionário, bloqueando-se, ali, tanto as perspectivas históricas quanto as coordenadas de ação militante, se é possível dizê-lo de maneira tão reduzida; Machado de Assis defrontava-se, em plena redação do livro, com a Abolição e a Proclamação da República, que punham de modo ainda mais perturbador a pergunta quanto ao sentido que passava a assumir a dominação brasileira, já de si tão peculiar – presente problemático que punha em crise tanto a perspectivação do passado quanto a projeção do futuro.

A dificuldade experimentada por esses grandes artistas, não se devendo a falta de talento ou tirocínio, era na verdade intrínseca ao seu trabalho, do qual constituía, certamente, a parte mais essencial: trata-se da exigência de que as formas artísticas respondam em profundidade à forma da matéria histórica. Dito de modo muito simplificado, e sem temor da conotação moral implicada, trata-se de exigir que a forma artística não minta à matéria histórica, mas de fazer de sorte que elas se arguam e se ponham em causa uma à outra. Ora, tal exigência, dificultosa entre todas, é, como se vê, dialética e realista.

É certamente dessa mesma ordem a dificuldade que interessa ao trabalho do Alfenim. Não será por acaso que, em Memórias de um cão, confluem as perspectivas de Brecht e de Machado de Assis. O primeiro é referência estética e política de que lança mão, com bastante liberdade, mas também de modo muito constante e decidido, esse coletivo teatral, ao passo que o recurso à complexidade machadiana representa uma culminação, um momento de síntese, na pesquisa programática e de longo curso que constitui a sequência das “Figurações Brasileiras”, da qual já faziam parte as peças Quebra quilos, Milagre brasileiro, O deus da fortuna e Brevidades.

Que o trabalho dialético possa conduzir a momentos de impasse artístico, ainda ou especialmente quando nas mãos de artistas muito grandes, é inerente à natureza desse processo. Como ele depende, a cada tentativa, de um exame da matéria histórica, em sua mais estrita singularidade, e de uma descoberta das formas peculiares que a configuram, o projeto dialético é sempre risco e aventura, tem sempre algo de um salto no ar, sem rede, entre realidades escapadiças. Ao contrário dos procedimentos formalistas, que se amparam nas replicações retóricas ou na estetização abstrata, os processos dialéticos não têm receita nem comportam garantias – tanto podem dar certo, como podem dar errado. Seu critério não é a última moda, nem o panache de vanguardista, mas a emergência do real, cuja caução não é a autoridade e, sim, a iluminação flagrante da experiência, a instauração de perspectivas não-evidentes sobre o vivido.

Verônica Cavalcanti, cofundadora do Alfenim na adaptação de MachadoFelipe Ando

Verônica Cavalcanti, cofundadora do Alfenim, na adaptação de Machado

Aqui, todavia, reencontramos, em outro patamar, aquela dificuldade procurada pelo Alfenim: nada há, no mundo contemporâneo, de mais dificultoso que a apreensão do real – ou, por outra, o real só se vislumbra na extrema dificuldade de apreendê-lo. O capital retirou o real da ordem do direta ou imediatamente apreensível: ao converter tudo a si mesmo, o valor de troca recobriu crescentemente a face do mundo e reprimiu a diferença necessária para dizê-lo, isto é, narrá-lo, representá-lo etc., de modo que o real tornou-se em grande parte a própria dificuldade de sua apreensão. Não é outro o motor dos desenvolvimentos brechtianos do teatro épico e do teatro dialético, modos compósitos e contraditórios que indiciam em sua própria fórmula a crise de representação que os determina.

Quando, então, sob a supervisão livremente eleita do pensamento brechtiano, e sem pose nenhuma, o trabalho do Alfenim procura o mais complexo dos escritores brasileiros para, no seu legado, escolher a obra entre todas a mais problemática, – o Quincas Borba –, ele certamente está investigando o real, lá onde essa dificuldade é a mais incisiva e onde ela nos interessa mais diretamente: nas formas que o capitalismo engendra aqui, nestas suas beiradas, isto é, nas suas periferias, onde a sua ferocidade ao mesmo tempo se exibe, escancarada, e se oculta, mesclando-se a formas que lhe parecem incompatíveis.

Pois é justamente disso que trata o Quincas Borba – de investigar a feição que a barbárie brasileira assume quando, a partir de meados do século XIX, a acelerada atualização mercantil e financeira do país combinava-se com a manutenção tardia do trabalho escravo, produzindo, como reação, um copioso engendro de formas de crueldade, nas quais a brutalidade escravista e a frieza do cálculo capitalista se potencializavam reciprocamente.

Boa parte das dificuldades artísticas que Machado de Assis enfrentou na composição do romance decorre dessa combinação tão típica quanto esdrúxula. Se, por um lado, ela exigia o realismo, por outro, lhe retirava as condições de efetivação, subtraindo-lhe justamente as formas de diferenciação, de distância e de presumida isenção, que constituem as bases da famigerada objetividade. Como inventar formas que não mentissem a essa matéria histórica, se tratá-la objetivada e distanciadamente seria desfigurá-la e, não fazê-lo, seria desatender ao que nela é eminentemente prosaico e realista, isto é, material e moderno? Esses problemas pressionam, todos, em conjunto, a formação do ponto de vista, onde, evidentemente, desembocam e exigem uma síntese que seu caráter insoluvelmente contraditório interdita. Por isso, a cifra do ponto de vista narrativo de Quincas Borba, depois de ter dado muita dor de cabeça a Machado de Assis, continua como um segredo muito bem guardado, em que pesem as respeitáveis e elucidativas observações da crítica.

A encenação do Alfenim herdou todos esses problemas, tornou-os seus, ao chamá-los ao teatro. Para o enigma do ponto de vista narrativo, criou a solução engenhosa de delegá-lo ao cão, homônimo do filósofo maluco Quincas Borba, cujo nome dá título ao romance. Se não estiver enganado, reconheceu assim o caráter decisivo e infinitamente problemático do ponto de vista que informa a narrativa, assim como identificou as peculiares funções da personagem-cachorro no romance, em cujo âmbito faz figura, ao mesmo tempo, de elemento interno e externo, humano e não-humano, implicado e isento etc.

Escravo condenado por assassinar dono em 'Memórias de um cão'Felipe Ando

Escravo condenado por assassinar seu dono

Não custa acrescentar que, dar a função de narrador ao cachorro, é também reconhecer as já referidas pressões realistas e não-realistas que percorrem a matéria. É provável que o espectador da peça identifique, também na sintaxe da cena, por assim dizer, a alternância dos registros da figuração realista e de dispositivos alegóricos, didáticos e fantásticos: a estação de trem de Vassouras, por exemplo, é de realismo de cinema, enquanto as “lições de Humanitismo” exploram toda a gama simbólica acima mencionada. Terá, assim, a peça, na verdade, não um, mas vários pontos de vista.

Entretanto, para ser fiel à encenação, é preciso dizer que, antes mesmo de dar a palavra ao cão narrador, a peça deu a palavra à própria matéria histórica. Ao abrir-se com a cena do cortejo, que conduz ao patíbulo um escravo condenado pelo assassinato de seu senhor e dono, ela foi direto ao “coração das trevas”, que é, por assim dizer, a verdade do ponto de vista narrativo de Quincas Borba.

Creio que essas escolhas, entre tantas outras, o Alfenim as fez urgido por um sentimento da aguda atualidade dessa matéria e, ao fazê-lo, tratou de dar corpo, em cena, a todas aquelas “coisas que temos o cuidado de não definir com clareza nem a nós mesmos”, de que falava o crítico citado no início destas linhas.

[1] A personagem de ficção. São Paulo, Perspectiva, 1968. Devo a lembrança dessa passagem ao Plínio Birskis Barros, guia incomparável da Paraíba.

[2] O material Fatzer só se encontra acessível em português graças ao trabalho de Pedro Mantovani, O complexo Fatzer de Brecht. Dissertação de Mestrado, USP, 2011.

.:. Texto inédito escrito para o Caderno de apontamentos em torno do espetáculo Memórias de um cão, do Coletivo de Teatro Alfenim, a ser publicado neste semestre. A iniciativa do grupo inclui autores como Iná Camargo Costa, Sérgio de Carvalho, Walter Garcia e Alexandre Flory, participantes do seminário “A atualidade de Machado de Assis” (2014). A transposição para a cena do romance Quincas Borba estreou em maio de 2015, na Casa Amarela, sede do Alfenim em João Pessoa. Após temporada de dois meses, seguiu para Aracaju, Maceió, Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte e, mais recentemente, Maringá e na Caixa Cultural de Brasília e Curitiba. Soma mais de 80 apresentações até aqui.

Ficha técnica:

Direção e dramaturgia: Márcio Marciano
Assistência dramatúrgica: Gabriela Arruda
Com: Adriano Cabral, Lara Torrezan, Paula Coelho, Ricardo Canella, Verônica Cavalcanti, Vítor Blam e Zezita Matos
Direção musical: Mayra Ferreira e Nuriey Castro
Composição musical: Márcio Marciano, Marília Calderón, Mayra Ferreira, Nuriey Castro, Paula Coelho, Vítor Blam e Walter Garcia
Músicos: Mayra Ferreira e Nuriey Castro
Figurino: Patrícia Brandstatter
Máscaras e caracterização: Coletivo Alfenim
Consultoria literária: José Antonio Pasta e Iná Camargo Costa
Produção executiva: Gabriela Arruda
Realização: Coletivo Alfenim

Professor de literatura brasileira na USP, com doutorado na mesma área e instituição; mestrado em teoria literária e literatura comparada também pela USP; e pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. Livre-docente em literatura brasileira pela USP, onde é professor sênior. Seus trabalhos de pesquisa concentram-se no estudo do romance e do conto no Brasil, além de artes cênicas.

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