Crítica Militante
3.9.2016 | por Gabriela Mellão
Foto de capa: Guto Muniz
O Grupo Galpão nasceu numa mesa de bar. Nós, espetáculo com direção de Marcio Abreu em cartaz em São Paulo após temporada no Rio e em Belo Horizonte retoma a essência desse encontro ocorrido há 34 anos.
A peça celebra a união problematizando elos e nós da contemporaneidade através de um jantar insólito com os integrantes do grupo. Eles preparam uma sopa. Entre cortes de abobrinha e cenoura, falam de si, refletem sobre o outro, questionam-se sobre o nós.
Ritual ao mesmo tempo rotineiro e sagrado, a refeição compartilhada pode servir de base a uma cerimônia transformadora tanto quanto reduzir-se a um ato trivial. A montagem, com texto de Marcio Abreu e Eduardo Moreira criado a partir de improviso dos atores, alcança as duas paisagens. Indagações sobre questões relevantes da existência convivem com frases que beiram a irreflexão, supostamente ditas de modo espontâneo pelos atores, ao calor do momento.
O emaranhado simbólico representa não apenas a força do coletivo, também seu peso. Quando os intérpretes se amontoam sobre Teuda Bara, numa tentativa de reter a atriz ao grupo, a apologia ao encontro dá lugar à asfixia
A atriz Lydia Del Picchia assume a importância da reunião. “Essa é a nossa última sopa”, diz ela no palco, em analogia à comunhão de Cristo antecedente à crucificação e ressureição posterior.
A aproximação é oportuna no caso do grupo mineiro que protagoniza de fato um renascimento em Nós e já viveu muitas vidas em pouco mais de três décadas.
Coletivo de atores referência no cenário do país por desafiar a passagem do tempo unindo a esta proeza a arte da renovação, o Galpão solidificou-se como companhia de linguagem popular e se engrandeceu ao aventurar-se por diversos territórios estéticos.
Reinventou-se constantemente convidando diretores a potencializar seu repertório, entre eles Gabriel Villela, Cacá Carvalho, Paulo José, Paulo de Moraes, Yara de Novaes, o russo Jurij Alschitz, além dos próprios componentes do grupo. Pesquisou comédia, dramaturgia brasileira e drama, dedicando uma trilogia a Tchekhov e provando ser um grupo também afeito a interiorizações apesar de mais habituado a externar emoções. A idealização e gestão do Galpão Cine Horto, um dos mais importantes centros culturais de criação, formação, pesquisa e intercâmbio do país, sublinha inclinação à troca artística e reciclagem.
A parceria com o encenador da companhia brasileira de teatro reforça a personalidade camaleônica do coletivo e desvela sua ambição em alinhar-se às elucubrações do teatro experimental da contemporaneidade. A vivência é desafiadora ao aproximar o Galpão da performance, arte inclassificável de essência eminentemente política, pautada sobretudo pela liberdade de expressão, dramaturgia do corpo e intersecção de linguagens.
Com Marcio Abreu, o grupo dá sua contribuição à criação do teatro político da atualidade do país, menos afeito a literalidades como nos anos 1960, potencializado pela poesia e abstração.
A concretude do jantar é traduzida ao espectador através de seus cinco sentidos (uma vez que este sente o cheiro da sopa e se estiver com sorte pode ser um dos felizardos a experimentá-la). Não demora, entretanto, a se dissolver através de repetições em looping de fragmentos do espetáculo.
A reincidência da repetição adensa progressivamente a obra. O tempo desafia a coerência do relógio da natureza. Passa a imprimir no palco uma lógica própria, na qual o corriqueiro ganha ar extraordinário. O cotidiano se desconfigura tornando a refeição rarefeita. Falas triviais se tornam enigmas, os quais exigem esforço do espectador para serem interpretados. Esse jantar – os sinais evidenciam – anseia por transformação.
A repetência tem o poder de instaurar uma metralhadora de indagações na mente do espectador. Quantas oportunidades cabem em uma vida? Oportunidades para escolher melhor, para amar melhor, para viver melhor? Quanto de reinvenção é necessário para alterar valores cristalizados e modificar a força do hábito? Se o tempo é circular, renovando-se constantemente e se a existência é resultado da repetição dos dias, por que é tão custoso o renascimento?
Ainda que se trate de um jantar de fato, em que os atores preparam sopa diante dos olhos do público e esta cozinhe a seu tempo no palco, a reprodução insistente da sequência de falas e ações comuns transforma o jantar em manifesto poético de dimensão política.
Ator e coletivo, elos e nós se misturam a ponto do elenco virar uma massa singular, coroada por uma fita de esparadrapo que abraça os corpos, unindo-os. O emaranhado simbólico representa não apenas a força do coletivo, também seu peso. Quando os intérpretes se amontoam sobre Teuda Bara, numa tentativa de reter a atriz ao grupo, a apologia ao encontro dá lugar à asfixia.
A selvageria é cria da civilidade e está sempre à espreita. “Todo mundo tem sempre uma fera escondida dentro de si. Na primeira oportunidade ela pula para fora”, constatam os atores, eles próprios mártires e algozes, responsáveis por atos de compaixão e violência.
Sobretudo num grupo, é tênue o limite entre poder construtivo e destrutivo. A intolerância não é privilégio dos monstruosos, já dizia Hannah Arendt. É comum o comando abusivo ter o bem como fim. Para a transformação da sociedade talvez bastasse reflexão de cada indivíduo sobre suas ações particulares. A filósofa alemã que teorizou sobre a banalidade do mal se concentrou sobre a potência revolucionária da racionalidade. “Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento, poderia condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?”, indagou ela.
Ato supremo de intolerância sintonizado com a realidade política do Brasil atual, a expulsão de Teuda realizada pelos demais integrantes do grupo é aliviada pelo argumento pretensamente complacente de Antonio Edson (“Vai ser melhor para todo mundo”), rebatido pela atriz em um ato reflexivo de modo geral escasso entre os comandantes de poder: “Quem é todo mundo?”
Por sua capacidade de levantar questões, as artes cênicas são uma das respostas possíveis à humanidade em sua busca incessante por rumo. Indagações recorrentes sobre sentido e percurso, transpostas de forma literal e poética para Nós, dão pistas sobre a saúde do Galpão, explicando sua longevidade e constante jovialidade. Também impulsionam a trajetória da companhia, encontrando reverberação no teatro performático e político, antes improvável e agora intrincado como nó apertado na história do coletivo.
Comunhão entre atores, entre público e plateia, iguais e diferentes, a festa final faz da dança comunitária festejo à exaltação irrestrita da fé no ser humano e na arte.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Nós
Onde: Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3234-3000
Quando: Quarta a sábado, às 21h; domingo e feriado, às 18h. Até 11/9
Quanto: R$ 12 a R$ 40
Classificação indicativa: 16 anos.
Duração: 90 minutos
Ficha técnica:
Texto: Marcio Abreu e Eduardo Moreira
Direção: Marcio Abreu
Com: Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara
Cenografia: Play Arquitetura – Marcelo Alvarenga
Figurino: Paulo André
Iluminação: Nadja Naira
Trilha e Efeitos Sonoros: Felipe Storino
Assistência de Direção: Martim Dinis e Simone Ordones
Preparação musical e arranjos vocais/instrumentais: Ernani Maletta
Preparação vocal e direção de texto: Babaya
Colaboração artística: Nadja Naira e João Santos
Assistência de figurino: Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Thays Canuto
Fotos: Guto Muniz
Imagens escaneadas: Tibério França e Lápis Raro
Registro e cobertura audiovisual: Alicate Conteúdo Audiovisual
Projeto gráfico: Lápis Raro
Design web: Laranjo Design – Igor Laranjo
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.