Crítica Militante
O avesso do claustro é um daqueles espetáculos do qual o espectador, consciente da porosidade engendrada pela obra, sai mobilizado a refletir sobre a função da arte assim que deixa o teatro. Com efeito, um amplo leque de imagens é aberto desde a entrada no ginásio do Sesc Santos, durante o festival Mirada: o batuque, lembrando nossa raízes africanas, a cortina fazendo entrever corpos seminus dançantes e a figura de Dom Hélder ainda bebê num carrinho de obras. Todas elas perfilam o contorno incerto de três personagens, cujas existências fraturadas parecem catalisar a heroicização do protagonista, Dom Hélder Câmara.
A Cia. do Tijolo, que já havia se debruçado em outras personagens progressistas no contexto da América Latina, como Patativa do Assaré, Paulo Freire e Federico García Lorca, resgata no espetáculo em questão a trajetória do bispo vermelho – epíteto de Dom Hélder –, sublinhando aspectos antidogmáticos e, sobretudo, anti-institucionais que norteavam seu pensamento. No entanto, longe de ser uma construção biográfica de cunho essencialmente dramático, salta aos olhos os múltiplos recortes e fragmentos que permeiam a tessitura cênica da obra. É, inclusive, perigoso caracterizar Dom Hélder como figura protagônica, com o prejuízo de perdermos o fio da meada que o une a outras personagens centrais, ainda que geograficamente distantes: um pesquisador a fim de investigar os caminhos do bispo em Recife, uma cozinheira que o auxilia no projeto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de construção do conjunto habitacional Cruzada São Sebastião no bairro carioca do Leblon e uma paulistana em constante trânsito.
O espetáculo da Cia. do Tijolo assemelha-se a uma oração profana cuja finalidade não é exterminar a lembrança de um passado sombrio, mas de rememorá-lo para que possamos encontrar formas possíveis de tomar, enfim, as rédeas da história fora do teatro
Ao realizar uma espécie de “missa profana”, expressão utilizada pela própria companhia para designar o espetáculo, O avesso do claustro expõe contraditoriamente a impossibilidade do drama nos tempos atuais pela via da falência da ideologia liberal e da anomia social brasileira. Inserida quase que literalmente na jaula de aço do capitalismo (uma quitinete de 15 m2), os percalços da paulistana, interpretada por Lilian de Lima, lançam luz às rupturas nas relações humanas, bem como à degradação dos sujeitos na principal metrópole do país. Numa cena marcante, a personagem decide, madrugada adentro, sair de seu apartamento minúsculo no centro da cidade para experimentar a sensação de ver-se inundada pela tempestade. Sem rumo definido, ela chega até a Avenida Paulista, centro comercial do país, e a seus prédios totêmicos, mas só encontra o fantasma da miséria produzido pelo capitalismo tardio. Ainda assim, prossegue: “Estava tão escuro, tão escuro e difícil de enxergar. E, então, eu podia ver perfeitamente tudo aquilo”. Lembrando os versos de Bandeira, o horror se apresentava pela face de uma criança tornada bicho, correndo em direção a um bueiro em busca da lagartixa que tanto refletia a acelerada erosão dos homens.
De estação em estação, simbolicamente associadas a nomes religiosos, a personagem caminha ao encontro dos desvalidos e de um mundo em que “Deus não existe” e não há “consolação”. Assim como essa paulistana que, no início, só pôde ter acesso à camada mais material da sociedade em meio à escuridão, é imposto aos espectadores que enxerguem a ação através de uma cortina quase transparente posta ante os atores. Esse recurso, que não deixa de sublinhar o caráter narrativo do espetáculo, veicula a sequência de cenas a uma determinada lente ou ponto de vista, sem o qual nos seria impossível fazer as necessárias conexões.
Assim, a cortina funcionaria a contrapelo do que o filósofo esloveno Slavoj Žižek chama de naturalização da ideologia, por ele resumida da seguinte forma: todos sabem o que fazem e, no entanto, perpetuam um certo comportamento justamente por acreditar que ele seja natural. Para nos livrarmos dessa mistificação do que é, na verdade, um aparato social, surge o olhar amparado pelo véu do sentido, o mesmo oferecido pela Cia. do Tijolo no espetáculo. Logo após a personagem paulistana chegar na estação Santa Cecília e se deparar ironicamente com o aviso niilista “Deus não existe”, o narrador interrompe a cena e comenta: “Como Deus não existe? Deus nunca esteve tão presente nos adesivos de carros, em declarações públicas e, até mesmo, nas reuniões na Câmara dos Deputados!”. Nesse ponto, Dom Hélder Câmara passa a aglutinar os fragmentos do enredo em torno da apropriação de um pensamento progressista presente na própria base do cristianismo. Consciente do retrocesso representado pelas instituições religiosas, o bispo chega a afirmar ter desejado o incêndio do Vaticano e, com ele, a morte do Papa a fim de que o pensamento cristão pudesse se salvar dos mecanismos de poder exercidos pela igreja.
Em meio a tamanho registro testemunhal, a cozinheira carioca também confessa a Dom Hélder sempre ter realizado ações benéficas por interesse e recusado o mal somente por medo de uma rígida reprimenda. A partir daí, a comunhão entre os quatro personagens ganha fôlego em torno de uma atmosfera profana, mas essencialmente ética. Diz Dom Hélder: “Chega de beneficência, sanduíches e biscoitos. Você não defende a dignidade do homem dando-lhe sanduíches e biscoitos, mas ensinando-lhe a dizer: ‘Eu tenho direito a um hambúrguer!’ Nós, padres, somos responsáveis pelo fatalismo com o qual os pobres têm sempre se resignado à pobreza, as nações subdesenvolvidas ao subdesenvolvimento. E prosseguindo desse modo nós provamos que os marxistas estão certos quando dizem que as religiões são uma força alienada e alienante, são o ópio do povo!”.
Nesse sentido, a trajetória do bispo engajado e sistematicamente hostilizado pela mídia durante os anos de chumbo perpassa não só a luta dos despossuídos, como também a defesa dos direitos de tantos perseguidos políticos nas décadas de 60/70. Traçando um importante paralelo com a atuação da Teologia da Libertação, os movimentos estudantis cristãos (JUC/JEC) e as Comunidades Eclesiais de Base, o pesquisador-narrador comenta trechos e poemas de autoria de Frei Tito enviados a Dom Hélder. Em um deles, Tito relata as inúmeras torturas sofridas na Operação Bandeirante (Oban), em 1970, inclusive o choque aplicado em sua língua pelo delegado Fleury que tinha o intuito de imitar perversamente o rito da hóstia sagrada.
Como em alguns dos espetáculos da recente edição do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, os espectadores são convidados para uma ceia coletiva com sopa e vinho, ao som de Se Deus existe, eu não sei. Karen Menatti, despida de sua personagem carioca, inspira a atmosfera de união coletiva naquele teatro minúsculo ao contar sobre a recente agressão que sofreu da Polícia Militar de São Paulo e os danos físicos e psicológicos por ela causados. Tornamo-nos parte de um todo que, indignado, pede a transformação do momento político atual. Sem saber se o momento havia sido idealizado pelo grupo, bradamos “Fora, Temer!” em uníssono, conscientes de que a fratura subjetiva dos personagens respondia a questões vivenciadas cotidianamente por cada um que lá estava.
A pergunta-chave do espetáculo – “Quem, mesmo dentre uma legião de anjos, poderá me ouvir?” – parece orientar uma série de outras indagações de fundo materialista. Contrários a uma abordagem dogmática da fé, o grupo não deixa de utilizar um cristianismo sobretudo ético. Talvez não seja avesso nem profano à concepção original, caso lembremos dos cristãos primitivos já estudados pelos filósofos Engels e Ernst Bloch, mas anda na contramão do cerceamento religioso-ideológico amplamente difundido pelo poder hegemônico. Percebemos, com isso, que o pessimismo da razão e otimismo da vontade ensaiados pelo espetáculo desperta um olhar solidário às vozes que nos cercam. Mais do que isso, desperta uma angústia por aquele momento ser algo tão fugaz e tão microcósmico.
Na última cena, em que grandes bonecos carnavalescos representando Patativa do Assaré, Paulo Freire, Dom Hélder e García Lorca tomam o espaço do palco, não posso deixar de indagar se aquilo não é, tal como os dias de Carnaval, um período em que ao povo é dada a oportunidade de inverter a lógica social para, ao fim e ao cabo, todos retornarem a seus postos de forma mais conformada. O pessimismo dura somente alguns segundos, enquanto não percebo os resquícios, ainda sobre o chão, dos tijolos utilizados na habitação popular idealizada por Dom Hélder na década de 50.
Recuperando uma frase de Brecht, a Cia. do Tijolo entra em acordo com Augusto Boal ao insistir que “se tristes são os povos que precisam de heróis, a nós, tristes latino-americanos, só nos restam eles”. Dom Hélder Câmara representa, a um só tempo, um herói brasileiro e um apologista das organizações populares. O tom narrativo da obra, a exortar o não-conformismo e a atuação coletiva frente a questões sociais, dissolve toda a mistificação do bispo que, diga-se de passagem, era vermelho. Em síntese, O avesso do claustro assemelha-se a uma oração profana cuja finalidade não é exterminar a lembrança de um passado sombrio, mas de rememorá-lo para que possamos encontrar formas possíveis de tomar, enfim, as rédeas da história fora do teatro.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Ficha técnica:
O avesso do claustro
Dramaturgia: Cia. do Tijolo
Direção: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção Musical: William Guedes
Com: Lilian de Lima, Karen Menatti, Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Flávio Barollo
Orientação teórica: Frei Betto
Músicos: Maurício Damasceno,William Guedes, Clara Kok Martins, Eva Figueiredo e Leandro Goulart
Figurinista: Silvana Marcondes
Concepção e construção de cenário: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Assistentes e aderecistas: Alexandra Deitos e Isa Santos
Rede e bonecos de pano: Silvana Gorab
Bonecões: André Mello e Cleydson Catarina
Cenotécnica: Julio Dojcsar e Majó Sesan
Costureira: Atelier Judite de Lima e Cecília Santos
Desenho de luz: Aline Santini
Operadora de luz: Laiza Menegassi
Assistente de luz: Pati Morim
Operação de som: Emiliano Brescacin
Orientação cênica: Joana Levi e Fabiana Vasconcelos Barbosa
Orientação vocal: Fernanda Maia
Composição de trilha sonora original: Caique Botkay e Jonathan Silva
Produção executiva: Cris Raséc
Assistente de produção: Lucas Vedovoto
Designer gráfico: Fábio Viana
Fotos: Alécio Cezar
Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestra em Artes Cênicas e bacharela em Letras com habilitação em português e inglês pela USP. Desenvolve pesquisa sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no período de exílio latino-americano, atuando principalmente nas áreas: estudos culturais, teoria crítica, história do teatro brasileiro e teatro político.